Periódico
Manchete

Publicada no livro O mais estranho dos países, de 2013.

Não sei os motivos profundos do fenômeno, mas este existe e se faz cada vez mais forte e espalhado: hoje, no Brasil, é comum o profissional que desconhece da sua profissão as regrinhas mais banais, as habilidades mais elementares à prática desse ofício ou dessa arte. E não é só isso, não; já é bastante chique praticar uma profissão sem saber praticá-la. As qualidades negativas, por um imponderabilíssimo segredo, passaram a ser mais recomendáveis que as qualidades positivas.

Por que não dizer mais? Direi mais: houve em nossa terra nesses últimos anos uma sutil e vitoriosa conspiração a favor da burrice, da ignorância e da incompetência. E da desonestidade, poderia acrescentar, não fosse mudar de arca. É o que sempre se chamou inversão de valores; isso antigamente não passava de figura de retórica; tornou-se realidade.

Imaginemos um santo sacerdote que não soubesse o catecismo, que ficasse embatucado se lhe perguntássemos de repente qual é o sinal do cristão ou que começasse a contar nos dedos as pessoas da Santíssima Trindade. Não, esse padre ainda não existe, mas a analogia nos serve: há muitos sujeitos por aí que, dentro das ciências que professam, ignoram qual o sinal do cristão ou que fazem um demorado esforço de memória para dizer quais as pessoas da Trindade.

Estamos vivendo uma divertida comédia social, mas ainda não chegamos à apoteose, isto é, ao momento da guerra de pastelões. Por enquanto, o baile de máscaras continua muito a sério, fingindo todos que estão a acreditar nas personagens travestidas. Aqui no nosso canto, leitor, podemos apreciar a grande festa.

Olha ali um pintor, calça de veludo, blusa manchada de óleo, um copo de bebida forte na mão, a dar gargalhadas aprendidas em Paris, dizendo palavrões às damas, e demonstrando através de todos os seus gestos que a vida fora da arte não tem o menor sentido. Evidentemente, trata-se dum artista genial. Por isso mesmo, não lhe peça nunca para pintar uma banana, que ele é capaz de fechar o baile. Quem sabe pintar banana (a expressão é dele) é uma besta quadrada. Para não ser besta quadrada, o nosso artista comprou um bonito compasso e pinta círculos pretos sobre fundo branco, semicírculos cinzentos, formas inatacáveis e eternas em sua pureza absoluta.

Perto do pintor, há um belo rapaz, alto, robusto, corado, um poeta naturalmente. Erramos. Pois a crítica mais avançada afirma que esse formidável miúra não é um poeta, mas o poeta, autor aliás dum arquipoema famoso, que só posso citar integralmente: V. É isso mesmo, leitor distraído, o poema é V, sem o ponto final, é claro. Os melhores espíritos do país sabem que, nessa consoante labiodental fricativa sonora, o poeta resumiu plasticamente todo o desenrolar da Segunda Guerra Mundial. É o máximo em poesia.

Mas passemos rapidamente a vista por mais alguns fantasiados. Nem todas as fantasias são igualmente sublimes. Vai ali, por exemplo, uma cozinheira que nunca fez um bife com sinceridade, mas todos reconhecem que seria capaz de fazer grandes papéis secundários no teatro.

Conversando com aquela bonita senhora fantasiada de elegante, vemos um colunista célebre, respeitado e bem pago. Descobriram a sua esmagadora vocação jornalística no dia em que escreveu sociedade com Ç. Riram-se dele os colegas. O moço corrigiu logo, trocando o C por um S cedilhado. Aí não se riram mais. Um homem capaz de inventar um S cedilhado tem garantido um feérico futuro no colunismo social. Coisa muito séria.

Máscara que dá muito em nosso baile é a de deputado. Debaixo dessas fisionomias cívicas de papelão pintado, existem contrabandistas, cangaceiros, mascates, ex-vereadores, etc. Mas não vamos estragar a festa; façamos de conta que eles estão mesmo a salvar o nosso Brasil.

Já os vereadores, por uma singular redundância, estão fantasiados de... vereadores. Muito original. É como se Raffles fosse a um baile de máscaras vestido de Raffles. São os únicos que não se disfarçam; é pra valer.

Há mais. Naquele canto, um médico diz a uma jovem que o complexo B foi uma das grandes descobertas de Freud. O cômico a contar anedotas nunca fez rir a ninguém: bossa nova. Em matéria de ponte, aquele engenheiro só conhece a ponte-aérea, mas de avião é que ele não viaja, pois, o homem não foi feito para voar. O rapaz falando fino e fanhoso é cantor. O cara de boné de coach de baseball pensa que é técnico de futebol. O imponente cavalheiro a medir ângulos com as mãos já convenceu a todos de que é o maior cineasta do mês. No mês que vem, demitido pela opinião pública, outro tomará o seu lugar. Sem falar, porque não há espaço, nos fabulosos técnicos eletrônicos, nos advogados que Deus me perdoe, nas paralíticas vestidas de bailarinas, nas respeitáveis vovozinhas brincando de vedetes, nos professores que de latim conhecem mal e mal as páginas cor-de-rosa do Larousse, nos sambistas duros de orelha, nos milionários do papagaio, nos public relations detestados pela cidade inteira, etc, etc.

Atrás daquele jarrão, mascarado de cronista, está este seu criado, mas, por favor, não espalhe, não espalhe.

paulo-mendes-campos
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