Fonte: Vento vadio: as crônicas de Antônio Maria. Pesquisa, organização e introdução de Guilherme Tauil,Todavia, 2021, pp.261-263. Publicada, originalmente, em O Globo, de 14/09/1955.

O escritor Fernando Sabino me levara à casa de Ovalle. Tinha sido uma visita programada, adiada e muitas vezes deixada para outro dia. Ovalle me recebia meio aturdido e logo depois descobri que ele se sentia na obrigação de dizer qualquer coisa muito certa, muito importante. Nosso encontro fora precedido de algumas informações generosas a meu respeito e de tudo que eu ouvira contar de genial dessa “vida conversada” de Ovalle, a que Carlos Drummond aludiu em seu artigo “A porta do céu”. Eu, porém, estava certo de que não diria nada que merecesse pasmo, que me deslumbrasse, que mudasse as convicções dos presentes. Ovalle precisava, todavia, como uma criança, conquistar-me. Houve uma hora em que ficamos os dois na área de serviço, assistindo a um baile carnavalesco que havia no ex-Cassino Atlântico. Perguntei umas coisas que ficaram sem resposta. O silêncio de Ovalle era tanto que seu corpo tremia de prenhez. Passamos à sala. Serviu-me um uísque irlandês que tinha gosto de madeira. Fomos à varanda, onde havia aquela cabeça de mármore (uma mulher) deitada no parapeito. Olhamos o céu e o mar, que não tinham nada de importante ou inspirador. Voltamos à sala e, ao mesmo tempo que bebíamos, mais me alegrava de estar conhecendo aquele homem de pijama. Os mais íntimos puxavam por ele, fazendo-o conversar. Contaram-se histórias e, num dado momento, sem que ninguém pudesse esperar, Ovalle se empertigou, apontou-me duramente e falou:

— Você é bom!

Até aquele dia, eu estava convencido de que era bom mesmo e não podia imaginar que mais alguém soubesse disso. Ovalle era um homem, para mim, capaz de ver os outros por dentro. Eu o amava por isso.

A primeira garrafa do uísque irlandês acabou e entramos noutra. Eu me sentia bêbedo e feliz. Ovalle foi buscar o violão. Fez um acorde e cantei sua “Modinha” (letra de Bandeira). Ovalle harpejava com a mão esquerda, fazendo as posições com a direita. Estava gostando do sentimento com que eu cantava e, talvez, pela bebedeira, pela emoção de ver Jayme Ovalle, percebi que estava cantando excepcionalmente direito. Quando acabamos, foi buscar uma parte de piano (edição antiquíssima), escreveu uma dedicatória e me deu. Conversamos até quase de manhã e, na hora de sair, esqueci a música. Voltei no dia seguinte para buscar, voltei duas ou três vezes, e ele sempre dizia uma coisa nova: “perdi” ou “joguei no mar” ou “levei para a alfândega e dei a não sei quem”. Não perdoava o meu desapreço pela “Modinha”.

Tudo o que guardei de Ovalle foi a noite do nosso conhecimento, com o  incidente de piano. Lembro-me ainda da extraordinária beleza de sua filha, que uma vez foi tirada da caminha para que eu a visse. Há pouco tempo, na manhã de domingo, a mãe Virgínia a levava para a missa. Parei, perguntei por Ovalle. Mãe e filha tinham mudado. Virgínia emagreceu e a menininha estava ainda mais bonita.

As duas histórias mais recentes da “vida conversada” de Jayme Ovalle contaram-me hoje. Um seu amigo gostava de provocar o pronunciamento católico de Ovalle sobre coisas de igreja de Deus. Na época do Congresso Eucarístico, perguntou o que Ovalle achava dos excessos de ouro e púrpura dos altares. E Ovalle explicou: “você já viu um amanhecer? Você já viu o sol o que faz de manhã? Deus é assim. Deus sempre foi um exagerado, meu filho”. Esse mesmo amigo, dias depois queria saber:

—  Ovalle, Deus gosta de você?

E Ovalle respondeu:

—  Acho que não. Sou o carcereiro de Deus. Ele está preso no meu coração.

Soube da morte de Jayme Ovalle ao chegar de São Paulo, na manhã seguinte ao dia do seu enterro. Era tarde para despedir-me do seu rosto. Deixei alguns amigos em casa e fui andar sozinho na estrada do Recreio dos Bandeirantes. À minha esquerda, o mar. À direita, a lagoa. Em meu coração, a certeza absoluta de que Ovalle entrara para anjo. O céu estava lindo e Deus também.

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