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Manchete

Publicada no livro O mais estranho dos países, de 2013.

Meu amigo Otto, a quem enviei desta página uma carta, preparando-lhe o espírito para regressar ao Brasil depois de quase três anos na Europa, já está no Rio, e devagar vai tomando posse das coisas nacionais.

As novidades que advertidamente lhe relatei o impressionaram menos do que outros aspectos permanentes do modo de ser brasileiro e dos quais até certo ponto se esquecera. São estes justamente os aspectos que contrastam o modo de ser europeu, recortando-se, portanto, com nitidez quando se volta depois de longa temporada fora.

Antes de tudo, o que mais o espantou foi a intensa humanidade brasileira, a doçura da gente dentro de uma perfeita desorganização, a unanimidade do afeto nacional ao meio de condições de vida precárias ou hostis. Dois brasileiros que se desconheciam constituem sempre uma hipótese de íntima amizade depois de dez ou cinco minutos de conversa, sem que seja necessária a formalidade da apresentação. Nada mais violentamente antieuropeu do que isso.

Um silogismo de Otto — e esse ele já sustentava para os boquiabertos belgas — é que a cultura é apenas a arte da convivência. Ninguém convive com mais suavidade do que o brasileiro. Logo, o povo brasileiro é muito culto.

Outra tese sua é a de que somos, ao contrário do que espalham por aí, um povo altamente disciplinado, estribando essa convicção no argumento de que povo nenhum do mundo aturaria com tamanha paciência os dolorosos contratempos de uma cidade como o Rio de Janeiro, notadamente o tráfego diabólico. O carioca já devia estar louco ou ter explodido em virtude do enervamento cotidiano; só a vocação da disciplina impede essa catástrofe mental coletiva.

Outro raciocínio seu: tendo-se em conta que a Alemanha é um país dotado de todos os recursos para facilitar a disciplina e no Brasil, pelo contrário, nada existindo para permitir um mínimo de disciplina, o brasileiro é incomparavelmente mais disciplinado do que o alemão. Na Alemanha, tudo funciona, não sendo vantagem a disciplina; no Brasil, nada funciona, revelando-se mais forte, portanto, a nossa disciplina instintiva.

Para dar-me dois exemplos da fantástica capacidade brasileira de organizar-se para a desorganização, Otto apelou para a eloquência do senso comum, conseguindo transfigurar banalidades que todos sabemos. O Rio, me disse, é uma cidade que dispõe, como qualquer outra metrópole, de todas as complexas e dispendiosas instalações para o fornecimento de água à população: nascentes canalizadas em distâncias imensas, estações elevatórias, enormes reservatórios para tratamento, vasta rede subterrânea para a distribuição, hidrômetros, além de pias, tanques, banheiros e chuveiros para a devida utilização da água, representando uma fortuna em investimentos e manutenção. Tudo perfeito, tudo a provar a capacidade civilizadora do homem tropical, faltando exclusivamente um detalhe: a água.

Outro exemplo: o Departamento de Correios e Telégrafos tem de fato uma engrenagem fabulosa, sobretudo tendo-se em vista a nossa imensidade territorial, de índice demográfico rarefeito. Com todos os seus setores modernizados, cobrindo uma superfície de 8.500.000 quilômetros quadrados, um número fantástico de funcionários, equipamentos os mais diversos, trens sulcando os vales e as montanhas, atravessando lonjuras desabitadas, enxames de aviões cortando velozmente todo o país, camionetas carreando a correspondência nos centros urbanos, carteiros prestimosos a carregar os seus fardos como diligentes formigas, o Departamento de Correios constitui, sem dúvida nenhuma, um inestimável esforço administrativo, um serviço público extraordinário, ao qual só podemos imputar um único e pequeno descuido: a carta não chega ao destinatário.

Nada se resolve no Brasil, afirma Otto, mas sem qualquer irrisão ou pessimismo. Para que resolver? Muito melhor do que a solução é a profunda compreensão que todos demonstram pelos nossos problemas, notadamente nos locais encarregados de resolvê-los. Você tem um processo qualquer em uma repartição pública; o mesmo não será resolvido, pelo menos em tempo hábil. Mas que grande e grata simpatia todos ali manifestam pelo seu caso! Que criaturas compreensivas e humanas aqueles funcionários que não despacham o seu processo! Do chefe de seção ao servente, todos estão prontos a prestar-lhe qualquer obséquio pessoal, exceto, naturalmente, a solução (impraticável) do processo. O processo entre nós não existe para ser resolvido, mas para ser compreendido em toda a dimensão de seu conteúdo humano. Tanto maior o desajustamento humano causado pela insolubilidade do processo, mais intensa a solidariedade. Que admiráveis sentimentos humanos, por exemplo, desperta a pobre viúva que há sete, oito, doze meses vem se esforçando para receber seu montepio! Falta apenas um atestado, um papel, uma assinatura, às vezes nem falta nada, apenas um milagre. Mas que beleza o apoio moral com que todos confortam a velhinha! Que criatura de alma delicada o brasileiro!

Outro caráter nacional que muito impressiona o meu amigo é o poder de vincular pessoalmente as mais impessoais relações. Um motorista de táxi que lhe pediu o dobro da corrida justificou-se, contando-lhe em poucos minutos sua vida atribulada. Garante Otto que até os ladrões e assaltantes do Brasil roubam pensando menos no dinheiro, e sim porque não foram com a cara do sujeito.

Tendo também procurado alto funcionário da Alfândega, que nunca vira mais gordo, verificou que este nada podia garantir-lhe quanto à liberação da bagagem antes de dois ou três meses, no mínimo. Claro que muita coisa se estragará dentro desse prazo. E daí? Como compensação a seus prejuízos materiais, o servidor público estabeleceu imediatamente com o contribuinte (Otto) uma camaradagem imediata e esfuziante, quase impossível de ser encontrada na Europa, mesmo entre velhos amigos. Esse bom servidor (mais da alma pública do que da coisa pública), sentado em cima da mesa do gabinete, serviu-lhe vários cafezinhos, mandou buscar dois picolés no sorveteiro da esquina, contou-lhe anedotas picantes e aflições domésticas, bateu-lhe amigavelmente na perna e no ombro, pediu-lhe que aparecesse de vez em quando para um papo, prontificou-se a emprestar-lhe uma lancha-automóvel aos domingos, desdobrou-se enfim em gestos, não friamente cordiais, mas sincera e profundamente afetivos. E Otto arremata:

— Se naquele momento, um inglês entrasse no gabinete e nos visse nesse perfeito entendimento, cairia em estado lírico, a dizer para si mesmo: Que coisa bela é uma amizade de infância!

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