De como o prof. Jubileu de Almeida salvará a república

 

Fonte: Alterosa, de 17/09/1963.

Hélio Pellegrino e eu assistíamos, outro dia, ao programa “A verdade de cada um”, na Televisão Rio, quando ouvimos Sargentelli dirigir ao príncipe dom João de Orléans e Bragança uma pergunta formulada pelo professor Jubileu de Almeida. Poderíamos ambos supor que se tratasse de uma alucinação auditiva, mas não era; havia outras testemunhas. E todo mundo que viu o programa aceitou, normalmente, que aquela pergunta fosse da autoria do emérito professor Jubileu de Almeida.

Acontece, porém, que Hélio e eu, cada um à sua maneira, somos um pouco autores dessa figura exemplar de cidadão da república, de súbito reaparecida numa pergunta endereçada a um presuntivo representante da monarquia.

Quem teria retirado da obscuridade a que se recolheu o nosso ilustre, acatado e inexistente mestre? O enigma logo se desfez com a suposição que me ocorreu: o responsável pela volta de Jubileu só pode ter sido o nosso amigo Borjalo, humorista e homem de TV, que conhece de ouvido e admiração a vida pregressa do eminente brasileiro.

O doutor Jubileu de Almeida é um expressivo exemplo de fundação do ser pela palavra, se me permitem a licença de tomar emprestada a definição de Heidegger para a poesia. Foi Hélio Pellegrino que um dia, nos idos de 1940, cismou com a palavra jubileu. Se há Pompeu e Aristeu, Zaqueu e Gudesteu, por que não haveria Jubileu? A princípio, Jubileu só. Depois, doutor Jubileu — e logo o personagem começou a delinear-se. Sobrevindo-lhe o sobrenome e batizado Jubileu de Almeida, virou um bacharel bem-falante, doutoral e festivamente patriota. De doutor a professor, foi mais que um passo: foi uma exigência da professoral personalidade de nosso homem, que não foi tirado do barro como Adão, mas surgiu do nada, como o mundo das mãos de Deus.

Foi assim, pois, de uma palavra, um simples substantivo comum, que nasceu a, como a de Augusto dos Anjos, singularíssima pessoa do professor Jubileu de Almeida. Uma vez nomeado, nosso mestre passou a existir de maneira dominadora. Invocávamos seu santo nome em vão, a propósito de tudo e de nada, e lhe atribuímos, irreverentemente, muita pachecal tirada retórica e muito pretenso profundo pensamento. Jubileu foi citado por via oral e escrita e mais de uma vez engordou a nossa escassa erudição lítero-jornalística, nos jornais de Belo Horizonte. Quando eu era responsável pelo suplemento dominical da Folha de Minas, tive oportunidade de publicar várias máximas do professor Jubileu de Almeida, como recurso de paginação, ao lado de palavras igualmente luminosas e eternas de Napoleão, La Rochefoucauld e outros.

Os homens graves haverão de criticar-nos, com razão, por essa juvenil e alegre invenção de um seu igual, personagem gravíssimo, com o leviano e maldoso propósito de nos rirmos dele, tanto mais jocoso quanto mais austero. Mas Jubileu reagiu, como se vai ver, e se impôs ao respeito da nação.

Alguns anos depois do nascimento em Belo Horizonte do professor Jubileu de Almeida, estava eu, certa tarde, sentado diante de uma máquina de escrever, na sala de imprensa do Senado. Eu era repórter credenciado junto à Egrégia Câmara Alta. Depois de tarimbado nessa ocupação, ela às vezes me parecia maçante e tediosa. O obrigatório convívio com o mundo da oratória parlamentar desafina a alma da gente, põe-lhe um sustenido falso. Aquela ênfase sistemática, aquela permanente e subsidiada retórica, aquelas vozes empostadas, de variado sotaque e quase invariada monotonia, aquele Brasil de discurso, tão enjoado e postiço, muitas vezes me levaram a sonhar com um Parlamento impossível, mas ideal, do qual seria expulsa, por decoro regimental, a má oratória e todo o seu bombástico e artificial cortejo. Digo estas coisas quase solenes para explicar, ou ao menos atenuar o gesto leviano que cometi. Vão à guisa de defesa prévia, para que os espíritos magnânimos e misericordiosos compreendam o estado de alma que me fez recorrer ao nosso professor Jubileu de Almeida.

Depois de uma vasqueira sessão senatorial, cabível em meia dúzia de linhas, demorei-me a escrever algumas notas políticas para o jornal em que trabalhava. Uma delas dizia respeito à sucessão maranhense, que se procurava conciliar em torno de uma dessas “fórmulas altas” que costumam engendrar a figura isenta e lotérica do tertius. Como repórter aplicado à minha tarefa, eu apurara que três seriam os nomes cogitados, na hipótese de chegarem as forças adversárias ao entendimento que se procurava, sob a égide do Governo Federal. Um deles poderia então vir a ser o candidato comum ao governo do Maranhão. No momento de datilografar os citados três nomes (e deles já não guardo memória), ocorreu-me por mera distração escrever Fulano, Beltrano, Sicrano e... Inadvertidamente, tomei o impulso de quem vai encarreirar quatro nomes, e não três. Para não voltar atrás e não estragar a limpeza de meu original, não tive dúvida e sapequei logo: Fulano, Beltrano, Sicrano e Jubileu de Almeida.

Mal poderia eu imaginar a tempestade promocional e publicitária que se iria desencadear sobre a respeitável e encanecida cabeça de nosso mestre. No dia seguinte, voltando ao Senado, na minha rotina jornalística, tive oportunidade de ouvir o formal desmentido de um impetuoso senador maranhense. Não era verdade que ele tivera a iniciativa de sugerir os quatro nomes publicados (a essa altura, os nomes já eram quatro mesmo) ao exame dos partidos, para a pacificação da então tormentosa política de seu estado. Diante disso, só me cumpria redigir o desmentido, do qual tirei numerosas cópias, generosamente distribuídas aos meus colegas da bancada de imprensa. Tornava-se, assim, explícito, dito alto e bom som, que era prematuro falar no nome do professor Jubileu de Almeida, ou de qualquer dos três outros igualmente ilustres, como candidato ao governo do Maranhão. O desmentido, como era natural, foi discretamente divulgado por quase toda a imprensa brasileira, na manhã seguinte. Ficava o dito: o professor Jubileu não tinha sido lembrado por enquanto como um dos valores nacionais capazes de levar ao entendimento a buliçosa família política maranhense.

O acaso levou-me, 24 horas depois, ao gabinete do ministro da Justiça, que concedia, naquele momento, entrevista coletiva à imprensa. Um dos temas em pauta era sucessão maranhense. Cabia ao ministro a árdua missão de pacificar as forças estaduais em luta. Quando se tratou do assunto, soprei a um repórter mais afoito a sugestão de indagar do ministro se de fato, ele estava examinando a hipótese de reunir os partidos em torno da candidatura do professor Jubileu de Almeida.

— Os nomes virão depois — esquivou-se mineira e inteligentemente o arguto titular da pasta da Justiça, que evidentemente não quis passar recibo da grave falha que significava o desconhecimento de nome tão ilustre e acatado.

Ao terminar a entrevista, a reportagem estava convencida de que era cedo para cogitar de nomes. Mas Jubileu e outros apareceriam mais adiante, quando o esquema da conciliação já se tivesse consolidado. O que importa, porém, é que o eminente professor, mineiro de nascimento, tinha merecido as honras de uma citação indireta por parte do ministro da Justiça. Como tal, os jornais não podiam deixar de registrar o fato — e o registraram, graças à eficiência da imaginosa e diligente reportagem política.

Eis aí como Jubileu foi atirado às feras e lançado à ordem do dia, no tumulto dos acontecimentos políticos. Sua pacata e tranquila vida de personagem inexistente iria ser totalmente subvertida. Sabendo, como sabíamos nós, seus poucos discípulos, a que ponto ele era (e é) avesso à publicidade, pode-se imaginar a indignação do professor, que é homem de temperamento episodicamente exaltado, dado a rompantes quixotescos, a que os seus belos e bastos bigodes brancos dão um especialíssimo encanto. O fato é que, por vários dias, os jornais não mais o deixaram em paz. Uma vez cogitado (ou ainda não cogitado, como o afirmaram o ministro e um senador) para o governo do Maranhão, o provecto professor Jubileu foi retirado abruptamente do exílio um tanto cético e da amena obscuridade em que voluntariamente sempre procurou viver.

Naquela época, um dos homens que lideravam a oposição antivitorinista no Maranhão era o hoje deputado Henrique La Rocque de Almeida, então presidente do IAPC. Os adversários tinham suspeitado que partira de La Rocque, por ser Almeida, a lembrança do nome de seu provável parente Jubileu, também de Almeida. A especulação teve curso na reportagem política dos matutinos e, à tarde, fui encontrar o presidente do IAPC em seu gabinete. Estava em companhia de nosso amigo e seu conterrâneo, maranhense como ele, Franklin de Oliveira, o mesmo que hoje tão brilhantemente assessora e teoriza a revolução do deputado Leonel Brizola. Franklin, apesar de já ser nome nacional, contentava-se com o programa de revolucionar o Maranhão, onde era candidato a deputado, infelizmente não eleito. No gabinete de La Rocque encontrava-se também Odylo Costa, filho, outra figura de prol udenistamente engajada na luta antivitorinista. Lá só não estava o então vibrante e fogoso jornalista Neiva Moreira, hoje deputado e líder revolucionário, mas que nem por isso deixou de saborosamente tomar conhecimento da cogitada candidatura do professor Jubileu de Almeida, Depois de esclarecida a missão que me levava ao gabinete do presidente do IAPC, La Rocque, certamente de boa-fé, mas com uma ponta de lúdica simpatia pelo gracejo, concordou em distribuir à imprensa uma nota em que afirmava que não era parente nem amigo do professor Jubileu de Almeida. A nota continha outras importantes informações atinentes ao chamado “caso maranhense” e, se a memória não me trai, deve ter sido redigida por Franklin de Oliveira.

Outro esclarecimento, de menor amplitude, viria igualmente a público logo a seguir: o repórter político José Augusto de Almeida, natural do Maranhão, pretendera passar por sobrinho do professor, mas foi desmascarado pelo seu próprio suposto tio, em carta estampada, a pedido, num importante matutino.

A partir desse episódio, já não foi possível conter a onda de publicidade que envolveu o nosso provecto e respeitável mestre. As notícias a seu respeito se multiplicaram — e tais foram as deformações a que o submeteram, que ele teve de encaminhar uma longa, erudita e polêmica missiva ao Correio da Manhã, com o patriótico intuito de repor a verdade em seu equilibrado eixo. Esse documento, bordado com paciência segundo a psicologia e o estilo do mestre, foi redigido por Marco Aurélio Matos. O poeta João Cabral de Mello Netto, então no Brasil e militando na imprensa, glosou, com fina ironia e delícia, a carta do professor Jubileu — e confessou-se de público um seu ardoroso admirador e discípulo. Paulo Mendes Campos, por seu turno, abordou outros aspectos da biografia do grande humanista, inclusive a sua participação na famosa reforma do ensino em Minas, de autoria de Chico Campos. Estabeleceu-se, daí insopitável polêmica em torno dos feitos e da obra do professor Jubileu, inspirador discreto de tantos relevantes acontecimentos em nossa vida cultural. Em São Paulo, um escritor egresso da Semana de Arte Moderna, creio que Sérgio Milliet, depôs acerca da sutil e importantíssima intervenção de Jubileu no advento renovador do Modernismo. Alguns postulados ficaram assentados de pedra e cal: o professor era (e é) um notabilíssimo brasileiro, nascido em Minas, mas com numerosas perambulações por todo o país, inclusive pelo Norte. Daí a sua ligação com o meio maranhense, cujos líderes tiveram a glória de trazê-lo ao debate, contrariando a sua nunca desmentida modéstia.

Outro que se ocupou longamente da admirável figura do professor foi o poeta Vinicius de Moraes. Contou ele que, indo à Vila Isabel, em busca de subsídios para uma reportagem sobre Noel Rosa, lá encontrou, por acaso, o nosso mestre Jubileu de Almeida, que lhe concedeu uma memorável entrevista, publicada por Última Hora. Outro que aderiu a Jubileu, com a sua tradicional generosidade cívica, foi o jornalista Joel Silveira. Com os olhos na personalidade exemplar do grande cidadão, Joel aproveitou a oportunidade para malhar o sufocante e medíocre clima político nacional. Outros panfletos foram igualmente produzidos. A parte iconográfica ficou a cargo do repórter-fotógrafo internacional José Medeiros, que surgiu, a certa altura, com uma excelente fotografia do professor Jubileu, a qual vinha a ser, ao mesmo tempo, um autêntico retrato moral de nosso homem: o olhar flamejante e altivo, os bigodes old fashioned e digníssimos, a fisionomia civicamente brava e altaneira. Foi pena que Sérgio Porto, logo depois, contasse em crônica, ainda não assinada pela flor dos Ponte-Preta, que encontrara o professor na Livraria Agir, de cabeça inchada, como um simples e vulgar torcedor do Flamengo. O pormenor não alterou, porém, o perfil já histórico de Jubileu. Antes, deu-lhe um certo pico populista, que ia bem com a sua condição de grande líder às vésperas de assumir as rédeas do Poder.

Assim o viu o cronista Rubem Braga, que lhe dedicou duas crônicas no Correio da Manhã. Rubem, tomado de entusiasmo patriótico pelo professor, protestou contra a ideia de fazê-lo candidato ao governo do Maranhão — e lançou logo a sua candidatura à Presidência da República. Sua segunda crônica concluía, porém, com este desfecho decepcionante e terrível: “Pena que o professor Jubileu de Almeida não exista”. Mas Fernando Sabino não se conformou com essa revelação e protestou, em sua coluna, contra o pessimismo de Rubem Braga. Para provar sua existência real, Jubileu compareceu com outra epístola aos gentios — uma carta aberta de novo redigida por Marco Aurélio. A revista Manchete, fazendo eco ao protesto de Fernando, incluiu a biografia sumária de Jubileu, na coluna “Gente da Cidade”, em que tanta gente de carne e osso quis entrar e não entrou.

O tempo, implacável e ingrato, acabou sepultando de novo o professor Jubileu de Almeida na obscuridade e no quase-anonimato em que continua a viver. A política maranhense não foi pacificada. Jubileu não foi candidato à Presidência da República, por falta de compreensão das elites e falta de apoio das massas. A vida girou, o caos nacional prosseguiu a caminho do abismo à cuja beira jaz, há tantos anos, a nossa pátria. Tudo, evidentemente, por culpa coletiva de nós todos gregos e troianos, que não nos conciliamos em torno de uma reserva moral do porte do professor Jubileu de Almeida.

Em sua homenagem, dedico-lhe agora estas páginas, repassadas mais de emoção cívica do que propriamente de ironia, como há de parecer aos menos avisados. O fato de Borjalo e Sargentelli o terem lembrado é bom sinal. Louvável e lisonjeira foi também a atitude do príncipe dom João, respondendo, com tanta solicitude, à bem-formulada pergunta de nosso mestre, que assim rompeu, pela primeira vez depois de tantos anos, o enjoado silêncio que se impôs. Aproveito a oportunidade para sugerir o seu nome não aos políticos maranhenses, mas aos líderes que vão decidir a sucessão presidencial de 1965. JA-65 — Vejam bem que é um bom slogan, e o nome do homem começa providencialmente por J...

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