Publicada, anteriormente, no Diário Carioca,  coluna Primeiro Plano, de 18/11/1951, alterada, e sem título.  Para localização da respectiva crônica, buscar por "Os dias se alongam...".

Os dias se alongam, os crepúsculos têm mais cores, e ouviremos breve nas tardes imensas aquilo que um escritor de expressões certas chamou o esporro das cigarras. Os tons vão se tornando mais nítidos e intensos no ar pesado e claro. O excesso de luz torna os volumes difusos, os olhos doem. Estamos caminhando para o verão.

Só depois de muitos séculos veio um poeta discordar da euforia europeia ao chegar da primavera, chamando o abril inglês, dos lilases excitantes, o mais cruel dos meses. Mas entre nós as divergências sobre o verão são antigas e gerais. Temos o hábito de perguntar se a pessoa gosta ou não do verão. E as pessoas, diversas pela forma, pelo peso, condição social, sensibilidade, porosidade a preconceitos, têm um modo particular de viver o verão e senti-lo.

O homem cordial acha facilmente encantos no verão; o de coração opaco só tem sentido para o calor. As mulheres ficam mais nuas. A própria vida parece que fica mais nua. O verão carioca sempre respirou um erotismo forte.

O rico irá agora respirar em Petrópolis e Teresópolis o ar fino da serra; a classe média ficará por aqui mesmo penando e se divertindo; o pobre, sem outro escolher, continuará a quebrar pedras, e digo quebrar pedras porque estou ouvindo lá fora o golpe da marreta na alvenaria.

Os langores estivais da gente bem, seus passatempos nas cidades frescas, são monótonos, Petrópolis é invenção de maridos. Constroem lá um amor de casa e sobem as mulheres no verão — é tão bom para as crianças. Ficam eles por aqui, felizes, e vão ver a família nos fins de semana e falam com ar dramático dos que podem deixar o Rio durante os dias de calor.

O verão, sem dúvida nenhuma, é para a mocidade, todas as duas, a melhor, que é a do corpo, ou a sofrível, que é a do espírito. Porque o verão do Rio não é paz, é combate. Ameaça-nos a todo momento a doce idiotice tropical. Muitos caem na batalha e passam três meses em absoluto estado de estupidez. Que calor! Que calor! E não têm a iniciativa de escancarar a alma às curiosidades, às poesias, aos prazeres do estio.

Tempo também de estremecidos lirismos. Mais evidente e palpável se torna o mar, não apenas a água fresca onde é bom mergulhar o corpo, não apenas o espaço largo de onde bafeja a viração, não o mar assombrado pelo guaiar aflito dos ventos, não o mar dos iates grã-finos bordejando a Guanabara, mas o mar dos desejos insatisfeitos, o mar de um poder estranho e eterno, cheio de insinuações abstratas ao medo de viver e ao pânico de morrer.

Corrigindo a dureza desta cidade seca, o mar suaviza a aspereza de nossa vida, lançada para a frente, no sentido da linha reta, quando seria mais natural e doce seguir a curva de nossos caprichos e paixões. O mar é às nossas almas tímidas, viciadas na usura de satisfações pequenas, um convite forte ao arrebatamento, às dissipações.

Retórica pura? Relevem-m’a. É o verão. Devo dizer que as imagens desmedidas dos cronistas é a mais inocente das consequências desta época de calor. Devo dizer que os dois polos de que falava Baudelaire — um no sentido do bem, o outro no sentido do mal — não se equilibram no verão, pesando mais a agulha do mal. É agora que as coisas inesperadas acontecem: a donzela que muda de conduta, o vigário que larga a batina, os assassinatos absurdos, o frívolo que andava à malta e se casa e se faz exemplar, as resoluções insensatas, os desatinos populares, tudo isso que é surpreendente ou torto se registra com mais frequência durante os meses quentes. A “leva de verão”, dos maridos que abandonam o lar de dezembro a março, já um fato da sociologia carioca.

Existe um segredo do verão. Força é ter ouvido fino para entendê-lo. Um segredo que está no ar, nos bares, nas praias, na pele das mulheres, no olhar ansioso dos homens, na agitação geral, um segredo sensível àqueles ouvidos finos como o murmúrio de vozes distantes.

paulo-mendes-campos
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