Fonte: Toda crônica. Apresentação e notas de Beatriz Resende; organização de Rachel Valença. Rio de Janeiro, Agir, 2004, vol. II, p.563, Publicada, originalmente, na revista Careta, de 30/09/1922 e, posteriormente, no livro Coisas do reino de Jambon. Brasiliense, 1956, p.114. 

O que se nota, nas atuais festas comemorativas da passagem do centenário da proclamação da Independência do Brasil, é que elas se vão desenrolando completamente estranhas ao povo da cidade. O observador imparcial não vê nele nenhum entusiasmo, não lhe sente no ânimo nenhuma vibração patriótica. Se não há, na nossa pequena gente, indiferença, há, pelo menos, incompreensão pela data que se comemora. De resto, o nosso povo carioca sempre foi assim: nunca levou a sério as datas nacionais, sempre elas lhe mereceram essa atitude displicente que está tomando agora com o Centenário, festejado tão pomposamente com bailes e banquetes.

Há um conto de humorista inglês em que faz falar um mendigo de Londres da seguinte maneira: “Sou súdito de Sua Majestade Britânica. Tenho, além das ilhas Britânicas, o Canadá, a Austrália, a Índia, a Nova Zelândia e não sei que mais terras; entretanto, visto-me com farrapos, durmo, às mais das vezes, ao relento, e passo dias sem comer. Que me vale ter nominalmente tantas terras? Nada. Antes tivesse alguns níqueis por dia”.

Creio que o carioca raciocina de alguma forma parecida. Dirá ele: “Que me adianta José Bonifácio, Pedro I, Álvares Cabral, o Amazonas, o ouro de Minas, a feérica exposição, o Minas Gerais, se levo a vida a contar vinténs para poder viver?”

Um tal estado de espírito não é favorável para entusiasmos patrióticos; ao contrário, há de trazer depauperamento e abatimento geral.

Os tempos estão bicudos; tudo está pelos olhos da cara. Um pobre chefe de família tem que pensar constantemente no dia de amanhã. Terá ele tempo de impressionar-se com festividades patrióticas em que mais predominam jogos de bola e outras futilidades do que mesmo manifestações sérias de um culto ao país e a seu passado?

O Brasil passa por uma crise curiosa que não sei como classificar. Com essas festas do Centenário, nós vemos uma das suas manifestações. Abre-se um jornal qualquer. Páginas e páginas são ocupadas com notícias de pugnas esportivas que se destinam a consagrar a efeméride que passa. A data em si é esquecida; tudo que se pode relacionar com ela o é também; mas o negócio de bola e de boxe ocupa o primeiro lugar.

De forma que nós não festejamos os cem anos da nossa independência política. O que nós fazemos é transformar o Rio de Janeiro num grande campo de lutas de boxe e corrida de cavalos.

Disse no começo destas breves linhas que o povo não se associava às festas do Centenário. Enganei-me. Às esportivas, ele se associa de bom grado. A elas, e às de lumi¬nárias e às paradas militares.

O povo saberá o parentesco que elas têm.

lima-barreto