12 set 1954

[Guerra no colégio 4: vitória dos vagabundos]

Conforme dissemos, a criação de dois times de futebol, um Esparta, outro Atenas, pôs, mais uma vez, em evidência a superioridade desta cidade sobre a outra. Nós, os espartanos, por incrível que pareça, éramos também piores atletas. Até a idade colegial, os melhores jogadores de futebol são aqueles cujos pais dispõem de recursos para adquirir para os filhos uma bola de borracha ou aqueles cujos pais são tão desprovidos de recursos que passam todo o primeiro período da infância batendo bola de meia na rua.

Entre os espartanos, muitos só conheceram uma bola quando ingressaram no colégio, ao passo que os atenienses contavam em suas fileiras com vários meninos que traziam de casa as mais sérias ambições esportivas.

Mas não fugimos à luta. Pelo contrário, tínhamos uma desarrazoada confiança em nosso espírito combativo. Ainda hoje me espanto da ousadia com que respondemos ao desafio ateniense, jogando de maneira inapelável a nossa rivalidade. Éramos uns loucos. O que podíamos esperar de craques (?) como Minhoca, Tartaruga ou Nicodêmus? Dois jogos de camisa foram comprados: Atenas vestiu-se de azul; Esparta vestiu-se de vermelho.

Nossos pontos altos eram o centroavante, ou “centefór”, como dizíamos, um menino enfezado, chamado Tiãozinho, e o beque direito Manezinho, que vivia rindo. Pois não é que o nosso excelente zagueiro, valente e firme na rebatida, não sei se por ser parente do padre diretor e do padre Alcides Lana, acabou deixando Esparta para defender a cor azul de Atenas. Estávamos perdidos. Restávamos em Esparta, de melhores, Mário Lúcio Brandão (que foi também aliciado para a defecção e se recusou nobremente) na ponta direita, Tiãozinho no centro e, modéstia pra quê, eu no comando da linha média, Osvaldinho na ponta esquerda. Osvaldinho tinha invulgares qualidades pessoais, mas driblava muito, até perder a bola, com um prazer que o fazia rir-se do adversário. Divertia-se a valer, mas era inútil ao conjunto.

Osvaldinho, como também Tiãozinho, era de Nova Lima, onde nasceu e se criou o atual Escurinho. Nova Lima, por essa época, dava jogadores formidáveis de todas as idades e de todos os tamanhos. Eram também de Nova Lima, Perez, Tatavo e Pagão, três craques de outras divisões do colégio Dom Bosco, há vinte anos. E do Vila Nova F. C. daquele tempo, respeitado em todo o Brasil, eram Geraldão, Chico Preto, Zézé Procópio, Alfredo, Perácio e um grande centroavante que morreu tuberculoso, Mergulho.

Fomos à batalha. Lutamos heroicamente nos primeiros jogos sem conseguir vencer. Os atenienses riam-se de nós; nós lhes baixávamos o sarrafo. Tiãozinho era acometido de crises de raiva em campo, Mário Lúcio tinha o dom do insulto, logrando exasperar os olímpicos filhos de Atenas. Osvaldinho gozava o adversário com suas fintas. E eu, eu era um chato dentro de campo.

Assim, não obtendo a supremacia técnica, apelávamos para a ignorância. E vimos, satisfeitos, que a ignorância dava bons resultados. Usávamos avant la lettre a técnica Obdulio Varela. De uma feita, alcançamos um empate. Agarramo-nos a essa esperança de unhas e dentes.

Veio finalmente o domingo que só a pena de um Rui Barbosa, ou de um Ricardo Serran, poderia descrever: Esparta sobrepujava Atenas in-so-fis-ma-vel-men-te.

Com exceção de Murilo Magalhães Marques, um médio esquerdo duro na pernada, Atenas foi se intimidando perante a valentia e a guerra psicológica que lhe movia Esparta.

Ao mesmo tempo, o nosso time ia melhorando suas capacidades técnicas, aprendendo a dominar a bola com uma elegância, senão igual, pelo menos parecida, com que Pedro Luis Diniz Viana, Lulú, escapava pela ponta esquerda ateniense e centrava umas amargas bolas caidinhas sobre a defesa espartana.

Demos duro, meninos. E manda a verdade histórica consignar no ano da graça de 1954, que, em 1934, em Cachoeira do Campo, os vagabundos de Esparta venceram os sábios de Atenas. Na raça, mas venceram. Longo e atribulado foi o campeonato, mas, já ao fim do ano, Esparta dava em Atenas com a maior facilidade. E, em sua indigência de predicados, os filhos de Esparta descobriram que duas virtudes os animavam, sem que o soubessem: o amor-próprio e a vida.

 

Nota: Título atribuído por Humberto Werneck à crônica identificada na base de dados da instituição como “Conforme dissemos…”.

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