Chama-se indiscretamente Minhas embaixadas um livro francês moderno. Inspirado nele, talvez ainda venha a escrever um caderno sob o título de Minhas empregadas.
Ao contrário de minha amiga Clarice Lispector, sou um homem bastante fatalizado a ter empregadas um pouco, como se diz, sobre a débil mental. A meu ver, em língua portuguesa, ninguém exprimiu mais concretamente do que a romancista Clarice Lispector certas finuras de reações psicológicas. Pois muitas de suas empregadas, a falar frequentemente coisas que lembram as personagens, imitam-lhe a arte. Uma lhe contou que o noivo não se decidia ao casamento por ter a alma roída por um mal desconhecido; outra, num domingo ensolarado de folga, embora sentisse o corpo moído pela gripe, preferiu, a deitar-se, passear, porque a cama se riria de mim; uma terceira, ao observar a escritora refazendo com fadiga os originais de um livro, comentou: Ah, dona Clarice, minha profissão é mais fácil, pois se eu puser sal demais na comida, não tem mais jeito de consertar.
As minhas, em geral, são igualmente estranhas, mas de maneira bem diferente. Como não brilham pela sutileza, diria um desafeto que cada pessoa tem a empregada que merece.
Começo, entretanto, por uma exceção. Eu alugava quarto num apartamento, onde uma adolescente, escurinha e endiabrada, ajudava a quebrar as louças de uma patroa de bom coração. Jamais poderia ter passado pela minha cabeça que ela alimentasse inquietações. Pois descobri que Jandira, entre todos os meus livros de versos, copiava secretamente poemas de Carlos Drummond de Andrade em um caderno azul com um periquito empoleirado na letra C. Afinal, despedida, Jandira surrupiou-me A rosa do povo, do mesmo poeta.
Se não exigissem dos candidatos um mínimo de conhecimentos gramaticais, poderia a preta Benedita concorrer ao O céu é o limite, respondendo sobre a Bíblia. Empenhou-se apostolarmente por converter-me ao protestantismo, através de farta distribuição de folhetos e evangelhos e tentando-me, sobretudo, com a esperança da paz de espírito. Sofrendo de puritanismo galopante, quis também converter-me ao regime vegetariano, ou pelo menos ao peixe, mais inocente do que a vaca. Combati essa intromissão com a exigência formal de bifes sangrentos, devorados enquanto Isaías e Habacuque, pela boca dessa profetisa da Praia do Pinto, iam arguindo-me com as suas visões violentas.
Foi-se Benedita, legando-me sua filha Djídji. Assim mesmo: Djídji. A mais feia, a mais vesga, a mais triste, a mais torta, a mais lenta, a mais desamparada, a mais sonsa, a mais sonâmbula de todas as minhas empregadas. Que Deus a tenha. Alguém telefonou, Djídji? Telefonô duas veiz. Tomou o recado? Na primêra veiz isquici de preguntá. E na outra? Na outra veiz era ingano.
Chegava às oito horas e fazia o café, mas não o servia. Ia encontrá-la na cozinha, colada à parede como folha de papel carbono, olhos apavorados. Num sirvi porqué o sinho num disse nada. Um minuto de silêncio. Qué que esquenta de novo? Erguia depois a cafeteira no ar, inclinando-a um pouco, e sobrevinha-lhe uma perplexidade cósmica: Despeja?
Punha as coisas no fogo mas quem cozinhava era Deus. Arroz queimou, aipim empreteceu, deu uma coisa na carne, ovo engrolou. Às vezes, despertando animado, vinha-me a esperança de comunicar a Djídji um pouco do meu entusiasmo. Que vamos comer hoje, perguntava alisando as mãos e o dinheiro, vamos fazer um almoço de verdade. Espiava-me torta, desconfiada, abaixava os olhos, gemia: Ué, o sinho quereno, eu faço arroz.
Relativa é a eficácia da educação que as famílias burguesas do Rio dão hoje a seus filhos; nos aposentos sociais, tudo muito direito, a criança livre de superstições, a beber os mais sadios ensinamentos modernos; mas vai transpor a porta da cozinha e, como diz um amigo meu, é a própria África, com os seus orixás, quebrantos, exus, embaixadas, catimbós, histórias muito mais atraentes à imaginação infantil do que as nossas migalhas realistas. Uma cozinheira de Minas encheu-me o apartamento de fantasmas. Recusou-se a ir ver o mar de perto, por medo de caboclos água, seres perigosos e enfezados, parecidos aos homens, mas sem pelo no corpo.
Muitas são as empregadas e curta é a crônica. Uma confundiu os números (o 1 com o 2) e foi parar na farmácia presa de inenarrável hemorragia. Outra, de mais de 60 anos, telefonava todos os dias para uma neta, depondo contra mim: Meu patrãozinho é um causo sério, num come nada, num gosta de nada — Deus a perdoe. Quando lhe afirmei que adorava angu, não acreditou. Quá, instrangéro num gosta de angu, o sinhô tá é mangano cumigo. Consegui convencê-la de que não era estrangeiro, era de Minas. De Minas? O sinhô é mesmo minero?! Intão toque aqui, que nós semo irmão. Com todo o seu analfabetismo culinário, ficou na minha casa até que, um belo dia, tendo bebido todo o meu vinho, todo o meu gim, toda a minha cerveja, e o meu restinho de uísque, foi encontrada estendida no tapete, a queixar-se do coração e da idade.
De uma, para terminar, recebi há muitos anos uma bonita lição sobre o fundo rural que existe em nós, e sobre o que isso implica em sacrifícios. Chegou atrasada, contando que o temporal da véspera carregara seu barracão e seus pertences, no Morro da Catacumba. Como eu ficasse penalizado, consolou-me: Estava mesmo precisando de chover, é tão bom para a lavoura!