Correspondente de guerra andava à paisana

 

Publicada em Recado de primavera,  Record, 1984, com o título "Na revolução de 1932", com alterações.

Neste mês de julho estou fazendo 52 anos de correspondente de guerra. Eu tinha 19 anos, em março de 1932, quando comecei a trabalhar pela primeira vez, profissionalmente, em um jornal, o Diário da Tarde, de Belo Horizonte, pertencente, como O Estado de Minas, aos Diários Associados. No ano anterior eu havia feito o tiro de guerra na Faculdade de Direito, e toda minha cultura militar era um pouco de ordem unida e o desmonte da culatra de um fuzil 1908.

Em princípios de junho os paulistas haviam invadido o território mineiro, ocupando várias cidades. Depois regrediram e se entricheiraram no túnel da Mantiqueira e em algumas elevações próximas na fronteira dos dois estados. Viajei longa e penosamente em um trem cheio de tropa e de poeira, e me lembro de que quando ele parou em Três Corações tomei um banho delicioso no Rio Verde. Eu poderia ter entrevistado o mais importante cidadão local, mas não o fiz porque Edson Arantes do Nascimento, dito Pelé, só iria nascer em 1940.

O quartel-general das forças governistas naquele setor ficava em Passa Quatro, e o acantonamento da Força Pública mineira era em Manacá, uma estaçãozinha ali perto; fiquei alojado em um carro de segunda classe, de bancos de madeira. Fazia frio, mas eu comprei um cobertor e tinha um capote. O capote não durou muito: na primeira vez que fui à frente, acompanhando uma companhia da Força Pública, tivemos de avançar a pé, em fila indiana, pela beira de um córrego, no mato, cada homem guardando uma distância de 10 metros do outro; mas o inimigo nos viu e deu várias rajadas de metralhadora. Travei conhecimento, então, com o ruído que realmente dá medo na guerra, e não é estampido nenhum, mas o delicado silvo das balas passando perto: psiu, psiu, psiu... Foi aí que um tenente começou a fazer sinais para mim, depois veio correndo, me agarrou, tirou meu capote e o jogou dentro d’água; ele atribuía ao meu capote, que na verdade era bastante claro, o fogo do inimigo. Não reclamei, pois não me agradava servir de alvo, mas o capote fez muita falta. O cobertor que eu comprara sumiu misteriosamente no dia seguinte a uma noite em que certo oficial me convidara para ir dormir em seu carro — um vagão de carga todo acolchoado, cheio de maciezas e coisas quentes que ele comprara em Passa Quatro. Não aceitei porque achei o homem suspeito, e ele se vingou mandando dar sumiço no meu cobertor e no travesseiro que eu improvisara com um saco de estopa…

Minha segunda visita à frente não foi mais feliz. Viajei a princípio no alto de uns caixotes de munição, em um caminhão sacolejante, subindo a serra, fazendo prodígios de equilíbrio. Mais para diante não havia estrada, e seguimos a cavalo por uma picada que o Batalhão de Engenharia acabara de abrir na mata. Eu nunca tinha cavalgado em trote inglês, e o remédio foi aprender na hora, pois meu cavalo seguia o ritmo dos outros.

De repente o homem que ia na minha frente deu um urro de dor e caiu do cavalo. Saltei para socorrê-lo. Estava com a cara cheia de sangue: o garrancho de uma árvore, naquela espécie de túnel vegetal, havia arrancado seu olho direito. Ajudei a carregá-lo e fiz o resto da viagem com a cabeça bem baixa, até uma tal de Fazenda São Bento, de onde seguimos a pé, já noite, para uma posição do flanco direito, o Pico do Cristal.

Joguei-me dentro de uma trincheira e dormi exausto, mas acordei de madrugada porque o frio era de dois abaixo de zero. Tirei o cantil de um sargento que dormia ao meu lado e virei: estava cheio de cachaça. Sentia os pés entorpecidos, ou melhor, não sentia os pés, não podia andar; tomei vários tragos. Foi isso certamente que me salvou da gangrena, do que 12 anos depois, na FEB, a gente chamava de “pé de trincheira” além de descer aos pés, a cachaça me subiu à cabeça e, de manhã cedo, me arrisquei um pouco pela terra de ninguém, desejoso de ver melhor as posições dos paulistas, curiosidade que poderia ter sido fatal, mas me foi útil pelas advertências que então ouvi, e que relatarei, se resolver mesmo continuar esta belicosa crônica na semana que vem. Até lá.

rubem-braga
As crônicas aqui reproduzidas podem veicular representações negativas e estereótipos da época em que foram escritas. Acreditamos, no entanto, na importância de publicá-las: por retratarem o comportamento e os costumes de outro tempo, contribuem para o relevante debate em torno de inclusão social e diversidade.
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