10 set 1960

Festa de aniversário

Periódico
Jornal do Brasil

Publicada no livro A mulher do vizinho, Editora do Autor, 1962.

Chegou-se para mim, a carinha mais limpa deste mundo:

― Engoli uma tampa de coca-cola.

Levantei as mãos para o céu: mais esta, agora! Era uma festa de aniversário, o aniversário dela própria, que completava seis anos de idade. Convoquei imediatamente a família: 

― Disse que engoliu uma tampa de coca-cola.

A mãe, os tios, os avós, todos a cercavam, nervosos e inquietos. Abre a boca, minha filha. Agora não adianta: já engoliu. Deve ter arranhado. Pode ter ficado na garganta Quem é que engole uma tampa de cerveja? De cerveja não: de coca-cola. Pode ter ficado na garganta ― urgia que tomássemos uma providência, não ficássemos ali, feito idiotas. Tomei-a ao colo: vem cá, minha filha, conta só para mim – você engoliu coisa nenhuma, não é isso mesmo? 

― Engoli sim, papai ― ela afirmava com decisão. 

Consultei o tio, baixinho: o que é que você acha? Ele foi buscar uma tampa de garrafa, separou a cortiça do metal: 

― O que é que você engoliu: isto... ou isto? 

― Cuidado que ela engole outra ― adverti. 

― Isto ― e ela apontou com firmeza a parte de metal. 

Não tinha dúvida: Pronto-Socorro. Dispus-me a carregá-la, mas alguém sugeriu que era melhor que ela fosse andando: auxiliava a digestão. 

No hospital, o médico limitou-se a apalpar-lhe a barriguinha, cético: 

― Dói aqui, minha filha? 

Quando falamos em radiografia, revelou-nos que o aparelho estava com defeito: só no Pronto-Socorro da cidade. 

Batemos para o Pronto-Socorro da cidade. Outro médico nos atendeu com solicitude:

― Vamos já ver isto. 

Tirada a chapa, ficamos aguardando ansiosos a revelação. Em pouco o médico regressava: 

― Engoliu foi a garrafa. 

― A garrafa? ― exclamei. Mas era uma gracinha dele, cujo espírito passava muito ao largo da minha aflição: eu não estava para graças. Uma tampa de garrafa! Certamente precisaria operar ― não haveria de sair por si mesma. 

O médico pôs-se a rir de mim: 

― Não engoliu coisa nenhuma. O senhor pode ir descansado. 

― Engoli ― afirmou a menininha. 

Voltei-me para ela:

― Como é que você ainda insiste, minha filha? 

― Que eu engoli, engoli.

― Pensa que engoliu ― emendei. 

― Isso acontece ― sorriu o médico: ― Até com gente grande. Aqui já teve um guarda que pensou ter engolido o apito. 

― Vai ver que engoliu mesmo ― comentou ela, intransigente: ― como eu.

― Você não pode ter engolido ― arrematei, já impaciente: ― Quer saber mais do que o médico? 

― Quero. Eu engoli, e depois desengoli ― esclareceu ela.

Nada mais havendo a fazer, engoli em seco, despedi-me do médico e bati em retirada com toda a comitiva.

fernando-sabino
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