Fonte: Da quieta substância dos dias. São Paulo, IMS, 1991, pp. 257-258.
Nem que fosse pra ganhar todo o ouro do mundo ninguém teria coragem de ser árvore de rua. Se existe quem não manda em si e vive ao sabor e ao capricho de tudo é exatamente ela. Árvore de rua é mais ou menos como frango de terreiro. Nunca sabe quando deixa de ser frango de panela. Uma árvore nunca sabe quando deixa de ser árvore para ser fogo da dita panela, ser matéria variada e múltipla, ser lenha, cerca de quintal, pau de fósforo ou apenas pau podre, coisa sem dignidade, sem nome de família, sem mais companhia que não seja a própria decomposição e o próprio apodrecimento. Ser árvore de rua é um perigo. Se a gente procurasse fazer um seguro de vida para a árvore, não haveria de achar nenhuma “Sul América” que quisesse. Estando na rua, ela está em estado de sítio, sem garantias individuais. Rua de hoje, que freme de violências, recalcadas ou desatadas, é contra a árvore.
Nos saudosos tempos em que Francisco Escobar era prefeito e o doutor Orozimbo Corrêa Netto, oculista polígrafo, passava da oftalmologia para a botânica, falava-se muito em árvore, discutia-se nos jornais que espécies eram melhores para a arborização urbana. E magnólias, plátanos, carvalhos, alfeneiros, cássias ou tapuias-caienas, eucaliptos e quaresmeiras se sucederam no embelezamento das ruas, plantadas umas, arrancadas outras. E agora, nos últimos anos, ficaram definitivamente arrancadas. O povo respirou aliviado: a rua estava como ele queria, era só rua, postes e automóveis, com o seu festival de neuroses e de rumores. Uma beleza. Uma beleza? Não, pois ainda ficara uma árvore, uma tapuia-caiena, na esquina do doutor Perrone, médico que a viu crescer e a vem defendendo como um pai defende a filha. E há sociedades secretas maquinando a eliminação dessa última sobrevivente. Querem assassiná-la. O caso vem esquentando há certo tempo e agora acabou de ferver na Câmara Municipal. Logo estaria no Fórum, a árvore como ré, acusada de ser árvore, de não ter quatro rodas, não ter cheiro de gasolina e não sair do lugar.
Foi quando uma destas manhãs acordei ouvindo o ruído de machados, batendo a compasso como usam bater os machados nas derrubadas. Saltei da cama aflito, sob um único e negro pensamento: era a árvore do doutor Perrone, estavam aproveitando a fresca manhã para prostrá-la e esquartejá-la. Corri à janela para ver. Não, não era. A árvore na esquina estava de pé. Os machadeiros na verdade machadavam longe. Ainda não chegara o dia dela. Então, antes de pegar as ferramentas e sair para o trabalho, ajoelhei e rezei pela árvore.