Bebi ontem à noite, na mesa de um casal recente que comemorava, sem demasiada discrição, um segredo — esse tipo de segredo de casal recente que alguns meses depois todo mundo sabe, mesmo porque ele se revela nu e gritando. E hoje pela manhã bebi à felicidade de um outro casal, que acabava de se unir na igreja do bairro. Essas coisas comovem, sem perturbar, o velho solteirão que eu sou, ou que aprendi a me fazer — não exatamente, mas de certo modo como aquelas mulheres desquitadas para as quais o poeta Vinicius solicitava a piedade do Senhor — “porque nelas se refaz misteriosamente a virgindade”. Em todo caso, dentro de mim havia um eco de sinos a badalar, havia alianças a luzir, e mãos finas a tecer sapatinhos de lã. E mais tudo o que de gaiato melancólico os casamentos inspiram.
Foi nesse estado de espírito que recebi, pelo telefone, a notícia brutal: um amigo havia se suicidado pela madrugada. Minha amizade com Evaldo Ruy já contava anos, mas nunca chegou a ser íntima; ela se entretinha quase sempre, nas mesas de bar, através da frequência de amigos comuns. Só muito recentemente ela parecia se estreitar, e isso através de um incidente banal — minha zanga porque ele havia concordado em almoçar comigo um domingo, e eu o esperara inutilmente até 4 ou 5 horas. A zanga não era muita, porque outros amigos tinham aparecido para honrar meu modesto feijão; acabou havendo outro almoço, com Elizete Cardoso. E minha última imagem dele há de ser esta aqui, na minha casa, de copo na mão, alegre e distraído, a contar, com sua grande voz rouca, histórias de Newton Freitas e outros amigos comuns.
Esse homem forte e cordial, eu sabia que ele tinha problemas, eu ouvira falar de suas desordens de vida e de sentimento. Mas isso todo mundo tem, que dirá um homem que era artista e boêmio. Sua morte chocou-me porque eu tinha uma distraída confiança em sua energia e em sua capacidade de luta; julgava-o capaz de raivas e arrebatamentos, nunca de um gesto de desespero. E esse meu engano me dói; sempre nos sentimos (e na realidade somos) um tanto culpados, quando alguém perto de nós se abandona à morte. Um pouco mais de amizade e atenção de minha parte ou de qualquer de seus poderia talvez tê-lo salvo. Somos desatentos às criaturas que comem e bebem em nossa mesa, e apertam nossa mão; não vemos, não sentimos o que está perto de nós; como poderemos pedir aos outros misericórdia e ternura?
Que os casais amigos sejam felizes, e Evaldo Ruy durma em paz; seu nome será lembrado pela gente do povo nos versos de marchas sambas que ele criou, os homens como eu que costumam andar pelo seio das noite sentirão longamente falta de sua figura forte, alegre, generosa e amiga.
O homenzarrão rouco nos abandonou na madrugada.