Recebo uma carta anônima... Não é a primeira que me vem: é, entretanto, a mais bela de todas as cartas anônimas. E me comove nesta manhã de sol, porque é um gesto de beleza.

Trata-se de uma “corrente”, dessas que a gente deve copiar várias vezes e mandar a várias pessoas diferentes. Mas não se trata aqui de receber ou mandar nenhum dinheiro, nem de fugir à maldição de desastres. Não se apela para a nossa vã cobiça nem para a nossa vil superstição. O que devo mandar, anonimamente, a seis pessoas, é um poema de Pablo Neruda. Se fosse um poema político, seria propaganda. Mas é apenas o vigésimo daqueles Veinte poemas de amor e una canción desesperada. Releio com emoção esses versos: “Puedo escribir los versos más tristes esta noche”. É um poema de amor e de saudade; nada mais. Ele pensa na amada que já não o ama e diz: “De otro. Será de otro. Como antes de mis besos. Su voz, su cuerpo claro. Sus ojos infinitos”.

Há neste Rio de Janeiro, em meio a tanta tropelia vulgar e triste, uma pessoa que se emociona com um poema e conspira pela poesia. E manda este apelo anônimo e por isso nobre, e por isso grave e puro. “Porque en noches como esta la tuve entre mis brazos, mi alma no se contenta con haberla perdido”.

Há mais de 25 anos atrás um moço, no Chile, sofria a dor do desprezo, tão banal e tão ruim, e fazia versos quase vulgares, ainda que belos. Subitamente alguém acha que é urgente que todos saibam esses versos; e pede a seis pessoas que metam carbono em sua máquina e mandem a mais 36, que os mandarão a mais 216, que os mandarão a mais 1296, que os mandarão a mais 7806... dezenas, centenas de milhares, milhões de pessoas a ler: “Como no haber amado sus grandes ojos fijos...” ou “Pensar que no la tengo, sentir que la he perdido”.

Não sei, mas não sinto ânimo de continuar a corrente. Alguma coisa me parece subitamente de uma tristeza monstruosa na progressão geométrica desse lamento noturno. “Mi corazón la busca, y ella no está comigo...”. Relembro a voz do poeta e ouço a mesma voz grave murmurando isso em milhares de bocas — e essa multiplicação mórbida e bela me faz mal.

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