Depois da aventura do Hotel Avenida, em que me vi mudado no lavrador Anacleto, passei a funcionar com o meu próprio nome e pessoa, e creio que nada teria acontecido se ontem pela manhã não me desse na cabeça ir à praia, depois de uma longa peregrinação pelos bares noturnos; eu sentia ao mesmo tempo um grande cansaço e muita excitação nervosa e cuidei que seria bom dormir na areia ao sol depois de salgar o corpo num mergulho.

Foi quando me ergui, a vista ainda turva, que ouvi alguém chamando Bob. Era uma jovem senhora de impressionante beleza, que sorria na minha direção; voltei a cabeça para ver quem era Bob, e atrás de mim havia apenas o oceano Atlântico.

No mesmo instante em que me voltava senti que meu corpo se adelgaçava na cintura, e os músculos do braço e do tórax cresciam; respirei fundo, para encher meus amplos pulmões e senti em todo o corpo uma tensão primaveril; eu estava estranhamente forte e leve. Saudei alegremente minha querida amiga Marlene Dietrich e pedi notícias do filme O anjo azul que ela ia fazer; na verdade não esperava encontrá-la na Cote d’Azur neste verão. Lamentei que ainda não se tivesse inventado a pesca submarina, mas convidei-a para passear no meu iate, e assim chegamos ao Brasil onde notei que ela estava um pouco chocada porque os operários estavam em greve. Discretamente assinei um cheque suficiente para cobrir o aumento de todos durante um ano, e mandei distribuir de graça pelo povo excelentes gêneros alimentícios, tecidos para roupa, sapatos tênis e balões de borracha coloridos, assim com flores naturais, de maneira a que ela tivesse a melhor impressão.

Marlene não soubera de meu encontro com Greta Garbo em minha vida secreta do Himalaia e estava linda na minha rede azul tomando cajuada, de tardinha, e ria muito dizendo que o meu alemão tinha um leve sotaque eslavo; eu reconhecia que era possível, porque no último campeonato mundial de xadrez, que me dera o título, eu passara dias falando russo. O telefone tocou, era o Tex, empresário do Dempsey, me pedindo segredo do que acontecera na véspera, quando eu fora obrigado a derrubar o rapaz com um murro devido a uma sua referência infeliz à minha amizade com Joan Crawford: mandei dizer ao Jack que não havia nada, continuaríamos bons amigos, e eu como simples amador não tinha interesse em prejudicá-lo em sua carreira. Marlene começou a cantar Lili Marlene que só seria divulgada na próxima Grande Guerra, e confesso que me esqueci de meu encontro com Gide e Einstein. Quando anoiteceu, caminhamos ao luar, e minha felicidade era tão doce e tão antiga que me lembrei de uma profecia latina: “Et nox illuminatio mea in delicils meis”, e murmurei: “O vere beata nox, in qua terrenia celestia, humanis divina junguntur”.

Então ela disse — Rubem... — e sua pele começou a escurecer, percebi que se tratava de minha empregada que me chamava de “seu Rubem” pedindo dinheiro para a conta do padeiro e dizendo que o homem da geladeira tinha vindo, vai voltar amanhã e que me telefonaram do banco para ir com urgência lá.

— O senhor vai mesmo à praia ou eu posso botar o almoço? 

Levanto-me da poltrona, com uma careta:

— Bota.

rubem-braga
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