O céu é pesado, a tarde é morna, o bochorno é o vago, aéreo suor do mar. Lá está ele, quase pardo, atrás das árvores imóveis, resmungando abafado, como um velho leão dormindo a sesta na areia, o mar. Trabalho: meu corpo é oleoso; dentro e fora de casa as coisas e árvores me olham, paradas, com um ar de censura. Quem é esse que se inquieta e move, esse homem seminu e suado; porque não se estende, não se deita, nu, como esse mar, e como ele não respira lento? Escrevo; levanto-me, consulto livros, tomo notas, bebo água, volto. Trabalho; reajo contra esse conselho unânime da natureza, que é estar quieto. Sou algo de diferente, um animal; e destoo com alguma violência do metabolismo lerdo dessa tarde morna.

O exmo. sr. prefeito coronel Dulcídio do Espírito Santo Cardoso teve um ataque de distração e entrou água na minha caixa. Tenho água! Posso subornar as consciências e os corações; essa moça que veio me ver e levou a maior parte do tempo no chuveiro, eu a trato bem e a acompanho à porta com um sorriso, mas sei: ela não tem amor a mim, e sim à minha água. Este homem sólido, que ela abraçou, era apenas o Senhor das Águas. Tenho água; abro o chuveiro: chuáááá! Eu sou o Pai D’água: sabei-o, oh donzelinhas aflitas, suadas flageladas que vos quedais sofrentes em vossos apartamentos de torneiras secas: tenho água! Vede: a cozinha está limpa e arrumada, os talheres brilham, na penumbra da gaveta, a porcelana espelha toda a felicidade simples da limpeza; a roupa está quarando imaculada; a planta no vaso está feliz, plantada na terra úmida, feliz com essa mãe preta que lhe dá a mamar água. Tenho água!

Mas saio do chuveiro, e a água de meu corpo se evapora no ar: logo um tênue suor poreja. E então, sinto, quase imperceptível, débil como um suspiro de criança, um primeiro sopro de vento. Foi apenas um segundo, como se alguém dissesse: ah... Mas o senti na pele. E sei; olho a terra e o céu e o mar, vejo que estão carrancudos e quedos, aguardando os acontecimentos debaixo da grande, silenciosa pressão. Cesso de trabalhar, planto-me na varanda, também quedo e opresso; quero estar solidário com meu rebanho de galhos, ondas e nuvens, sou um atento pastor. Não há outro ser humano, aqui, mas basto como testemunha, e participarei de tudo. Aqui estou imóvel, paciente, de olhos semi-cerrados no mormaço, porém vigilante. E de súbito, numa lufada quente, o vento alcança a minha varanda.

rubem-braga
As crônicas aqui reproduzidas podem veicular representações negativas e estereótipos da época em que foram escritas. Acreditamos, no entanto, na importância de publicá-las: por retratarem o comportamento e os costumes de outro tempo, contribuem para o relevante debate em torno de inclusão social e diversidade.
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