O dia é feio; o mar, atrás dos dois pinheiros escuros, é cinzento e grosso. Um pequeno barco vai focinhando as ondas com dificuldades, rumo ao sul; parece um pequeno animal ridículo e teimoso, e avança devagar, abrindo espumas.

Escurece. Daqui a pouco se acenderá o farol da ilha Rasa e também a pequena luzinha vermelha que pisca nas Cagarras, parece que na ilha das Palmas. Assim, não há perigo; quando estou muito desorientado, olho essas luzes do mar e me salvo de naufragar em terra.

Iría, uma preta magra, cantava na minha infância uma canção do tempo: “no mar desta vida... às vezes eu encontro... alguns escolhos... mas tudo vou levando... avante querida... pois guiam-me os teus olhos... pois guiam-me os teus olhos…”. Pois sim; a mim me guiam os sinais das ilhas do mar; teus olhos só me fazem perder. És fogo na roupa, ó mulher. Estou cansado de andar aflito.

Outro dia passei um susto; veio aqui certa moça que saiu andando pelo telhado, saltou para o terraço da construção vizinha e se pôs a correr descalça, cabelos ao vento, a correr e a dançar sobre o abismo. Eu chamava, ela se ria, como nos pesadelos. Fiquei frio, deixei a varanda, entrei, bebi mudo e trêmulo, esperando ouvir no rádio a história de sua morte e a notícia da minha prisão, sob graves suspeitas de crime na madrugada. Braga, o matador de moças, o monstro de Ipanema; e os vespertinos dariam com mau gosto as fotos de seu corpo imóvel, a cabeça partida, o sangue. Era tão bonita!

Quando ia começar o enterro com um extraordinário acompanhamento de curiosos  — eu poderia ir ao enterro?  — ela voltou rindo, me achou ali, pálido. Sem alma: minh’alma caíra no abismo e o corpo, maquinal, bebia uísque puro para ver se fabricava outra. Levei-a a casa; tudo, tudo nesta vida, menos mulher que anda em telhado.

Uma outra anda no meu próprio telhado, pisa na minha cabeça, me amassa as circunvoluções.

A vida é complicada por causa dessas circunvoluções. Se um dia eu fizer um homem vou distribuir o seu cérebro para a direita e para a esquerda em duas volutas, como nos capitéis jônicos; haverá mais harmonia: é verdade que logo aparecerão uns sujeitos canhotos do cérebro. Não, não vale a pena refazer a humanidade.

Está ficando escuro. Lá fora o mar está resmungando, grosso, como um bêbedo gordo. Acendei-vos, faróis! Iluminai-me!

rubem-braga
As crônicas aqui reproduzidas podem veicular representações negativas e estereótipos da época em que foram escritas. Acreditamos, no entanto, na importância de publicá-las: por retratarem o comportamento e os costumes de outro tempo, contribuem para o relevante debate em torno de inclusão social e diversidade.
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