Vejo num jornal — que é, por azar, o Correio da Manhã — um elogio ao projeto do deputado Paulo Abreu, que visa acabar com a cachaça. O projeto proíbe em todo o território nacional o fabrico, o transporte, a venda, a compra e o uso da cachaça. E tome multa de cinco a dez contos, e tome cadeia para quem beber seu trago.

Não conheço o Sr. Paulo Abreu (nem o autor desse nefando tópico) e espero que esse sinistro plano de subversão nacional seja ditado pelas melhores intenções. Delas está calçado o Inferno, e forrado o Brasil. Mas nem quero abordar o lado econômico do projeto, aparentemente muito bonito (as máquinas e não os homens, passariam a beber cachaça) e na realidade calamitoso. Nem sequer imaginar as consequências imediatas, por exemplo: a) aumento do consumo da cerveja e principalmente da “grapa”, que é a aguardente da uva; b) exército de fiscais para impedir que o dono de um canavial faça, como se faz neste país desde que ele existe, a sua honesta cachaça; perseguições, abusos, tiros, facadas, mercado negro, banditismo; contrabando da excelente, mas cara, cachaça do Paraguai; c) desaparecimento, do mercado, de frutas já hoje caras e escassas, como o caju, essa fabulosa fonte de vitaminas, para o fabrico de aguardente; d) aparecimento de aguardentes de todos os tipos, os mais nocivos à saúde, para substituir a caninha; e) ruína de milhares de fazendeiros, sitiantes, falência de dezenas de milhares de comerciantes; f) descontentamento social agravado, com inevitável encarecimento do custo da vida para as massas pobres da população. E eu poderia ir até a letra “z”, se quisesse levar realmente a sério esse projeto maluco de um congressista aloprado.

No fundo, o simples fato de existir esse projeto é um sintoma grave. É a única indústria cem por cento nacional que se pretende acabar; é uma das únicas tradições deste povo que se tenta suprimir. Fazer isso em nome da higiene é o que pode haver de mais revoltante ou de mais criminoso; a gente pobre será, de um dia para outro, obrigada a beber álcool com ou sem água que é a primeira coisa que qualquer sujeito da roça ou qualquer empregada da cidade faz quando não tem cachaça à mão.

Se há abuso da cachaça, que se combata, como sempre se tem combatido, esse abuso, onde e quando ele aparecer. Que se faça, inclusive, o que nunca se fez, que é a fiscalização efetiva do produto posto à venda. O exemplo do Paraguai com sua aristócrata e suas cañas añejas mostra que a aguardente de cana bem tratada pode ser até uma fonte de dólares para o país, quando se obtém uma bebida capaz de ser tomada pura, como o conhaque, ou com água e gelo, como o uísque.

Que o Sr. Paulo Abreu invente outro jeito de salvar o Brasil. Não comece por tirar a cachaça do brasileiro pobre. Foi com essa cachaça que ele enfrentou a floresta e o mar, varou esse mundo de águas e de terras, construiu essa confusão meio dolorosa, às vezes pitoresca, mas sempre comovente a que hoje chamamos Brasil. É com essa cachaça que ele, através dos séculos, vela os seus mortos, alegra suas festas, esquenta seu corpo, esquece a dureza do patrão e a falseta da mulher. Ela faz parte do seu sistema de sonho e de vida; é como um sangue da terra que ele põe em seu sangue.

Se querem aprovar a lei, aprovem. Mas eu proponho, pelo menos, uma pequenina emenda, apenas para defender a economia do país e a dignidade de sua gente: onde está escrito “cachaça” leia-se “Coca-Cola”, promulgue-se.

 

Temas: Justiça; embriaguez; costumes.

 

rubem-braga
As crônicas aqui reproduzidas podem veicular representações negativas e estereótipos da época em que foram escritas. Acreditamos, no entanto, na importância de publicá-las: por retratarem o comportamento e os costumes de outro tempo, contribuem para o relevante debate em torno de inclusão social e diversidade.
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