Crônica anacrônica: quando o tempo define a política

Rachel de Queiroz, década de 1940. Fotógrafo não identificado. Arquivo Rachel de Queiroz/ Acervo Instituto Moreira Salles.

De literatura para “embrulhar sapato e forrar chão de cozinha”, como disse Antonio Candido, de escrita leve, cúmplice e direta, a crônica já serviu de matéria para muitas definições. Ainda mais porque este subgênero narrativo fez grande sucesso com a expansão da imprensa ao longo do século XX no Brasil, antes que a televisão cooptasse a maioria dos seus leitores. Mas não só de temas – políticos, amorosos, quotidianos, ficcionais ou não – e matéria – papel, caneta, jornais e revistas (impressos ou digitais), é feita a crônica. Durante uma pesquisa para livro, que durou dez anos, investiguei o fundo de crônicas de Rachel de Queiroz (1910-2003), depositado no Instituto Moreira Salles. Meu interesse voltou-se, sobretudo, para a escrita política da autora cearense, e um dos aspectos que sempre me chamou a atenção foi o fator tempo.

Em 1989, um leitor anônimo escreveu ao jornal O Estado de São Paulo: “Prezada d. Rachel: minha mulher se queixa de que a senhora está ficando politiqueira. Pensa isso porque é bem mais nova do que nós. Já eu, velho jornalista aposentado, sei que R. Q. sempre foi assim”. De fato, na pesquisa que realizei, notei que cerca de 20% das mais de três mil crônicas que a autora cearense publicou em vida, podem ser classificadas como de conteúdo político, em suas diversas escalas, local, regional, nacional, internacional. Para as pessoas da sua geração, Rachel sempre foi politiqueira: o tema já aparece em textos seus de 1929, quando a jovem cearense travou diálogo com a anarquista Maria Lacerda de Moura, e segue até 2001, nas crônicas publicadas no Estadão. Atualmente, os estudos sobre esta dimensão da sua obra destacam dois momentos principais da trajetória da autora: o fato de Rachel ter sido membro, em 1932, da seção brasileira do Partido Comunista (PCB), e o fato de, anos mais tarde, ter apoiado o golpe civil-militar conservador de 1964. Indico, neste sentido, o brilhante artigo da pesquisadora Isabel Lustosa, publicado no site do IMS em 2014.

Mas nosso interesse pode ultrapassar a ideia de uma aparente contradição entre estes dois momentos e estas duas posições políticas, focando naquilo que aconteceu entre estas duas datas. Acredito estar aí uma chave para pensarmos a história do Brasil, não somente pela chave dos autoritarismos, mas também através do estudo da luta pela democracia em países colonizados. Não é à toa que o período de 1945 a 1964 é chamado na nova historiografia basileira de “experiência democrática”. Seguindo esta orientação, proponho fazer uma breve análise dos anos 1950, tendo como método a tradição narrativa da micro-história italiana, ou seja, trazendo à tona, através de um episódio da vida da autora cearense, o relato sobre a complexa cultura política brasileira da época.

Em meados do século XX, Rachel de Queiroz é um dos nomes mais conhecidos da crônica brasileira, não só porque ela escreve crônicas há mais de dez anos em diversos periódicos, como o Diário de notícias (RJ), O Povo (CE), Folha Carioca, Folha do Povo, O Jornal, O Nordeste, O Unitário, Vanguarda Socialista, e outros, mas também porque ela assina a famosa coluna “Última página”, da revista O Cruzeiro, de Assis Chateaubriand. Nos anos 1950, essa era a revista mais moderna, de grande qualidade, diversificada em suas temáticas, e que tinha a maior amplitude de circulação nacional. As crônicas de Rachel de Queiroz são satíricas, polêmicas, perfeitas para o espaço de uma página, fácil de encontrar e rápida na leitura. Elas falam de amor, do sertão, da condição da mulher, esporte, cidade, literatura, trabalho, arte, história, memória, religião, futebol, comida, racismo e tantos outros temas.

Desde o início do contrato de Rachel com a revista, em 1945, os editores pediram para que a autora, no entanto, evitasse falar sobre política: “acham decerto que seria malvadeza permitir que uma senhora desprotegida como a pobre de mim se atirasse inocentemente a lobos e leões¹”. Pedido inútil. Rachel de Queiroz se considerava um "animal político", como tantos outros intelectuais de sua geração, e sempre fez do material impresso a sua tribuna.

Com a redemocratização iniciada em 1945, após o fim do Estado Novo, muitos jornais se engajaram em uma espécie de “catequese” política. Até porque a população tinha triplicado desde 1900 e, com ela, o número de eleitores, que poderiam ser homens ou mulheres, mas tinham que ser alfabetizados. A maioria dos jornais da chamada “grande imprensa” tinha um aspecto em comum: eram anti-Vargas, tendo escolhido o ex-ditador como a origem de todos os males, aproximando-o frequentemente dos ex-ditadores fascistas europeus. Esses mesmos jornais, no entanto, tiveram que lidar com a ascensão do “queremismo” durante a democracia, isto é, com o movimento que apoiou a presença de Vargas na Constituinte de 1946² e que seria a base de constituição do trabalhismo brasileiro.

Rachel de Queiroz era também anti-varguista de carteirinha. Nada de contraditório: a autora foi presa várias vezes durante o governo provisório e a ditadura do Estado Novo e, ainda que não tenha relatado torturas, tinha militado pela esquerda comunista e, em seguida, trotskista, diretamente perseguida pelo regime; amigas e amigos seus tinham sido torturados e mortos e livros seus foram queimados em praça pública, proibidos de circular. Nas suas crônicas políticas, especialmente aquelas publicadas no Diário de Notícias, Vargas era o principal alvo de Rachel de Queiroz.

No começo do governo de Eurico Gaspar Dutra (1946-1951), a autora cearense frequentava os grupos trotskistas, novamente reunidos em torno de Mário Pedrosa e do periódico Vanguarda Socialista, no qual ela escreveu algumas crônicas políticas. À medida em que os partidos foram se definindo, ela se aproximou do Partido Socialista Brasileiro (PSB), fundado por amigos seus, como Hermes Lima, e Domingos Velasco, também posicionados contra a antiga cultura política ditatorial.

O problema é que a nossa democracia, de 1945 a 1964, nunca pôde escapar de Getúlio Vargas, vivo ou morto. O ex-ditador se candidatou às eleições de 1950 e ganhou com mais de 48% dos votos, subindo ao poder menos de dez anos depois de ter sido deposto, e por via democrática. Hermes Lima mudou de partido e entrou no Partido Trabalhista (PTB) de Vargas em 1953. Já no ano seguinte, Rachel de Queiroz encontrava-se afastada dos trotskistas, grupo do qual foi membro fundador em 1933, ao lado de Mário Pedrosa, mas também do Partido Socialista Brasileiro, que ela defendera e apoiara desde a redemocratização de 1946. Em 1954, portanto, sua luta política a nível nacional concentra-se na oposição ao segundo governo Vargas.

É neste contexto que encontramos uma interessante crônica, escrita pela autora cearense, e que nos faz refletir à importância de se pensar a questão do tempo na crônica brasileira. E isto não somente em relação ao tempo da narrativa, mas em relação ao tempo da feitura da crônica, o tempo da escrita e da publicação, o tempo da leitura e da recepção.

Toda vez que passava as férias no sertão, viajando pelo Brasil ou pelo exterior, Rachel de Queiroz não deixava de escrever suas crônicas para jornal. Afinal, escrever era seu ganha-pão à época. A dinâmica só mudava um pouco, porque o tempo de chegada das crônicas ao Rio de Janeiro era muito longo e sujeito a intempéries, desvios, desaparecimentos. Rachel se ausentava, então, do Diário de Notícias durante as férias – já que suas crônicas para este periódico eram escritas na mesma semana da publicação. Mas, para a revista O Cruzeiro, onde o contrato era outro, Rachel escrevia suas duas a quatro folhas datilografadas e revisadas a caneta cerca de 15 dias antes de serem publicadas, estivesse ela no Rio de Janeiro ou fora dele. Quando ia para o sertão, a escritora dispunha de um homem que vinha a cavalo pegar a crônica e levá-la ao correio da cidade de Quixadá³. Assim foi que o mês de agosto de 1954, talvez o mais dramático da história do Brasil Republicano, só apareceu comentado nas crônicas rachelianas a partir do dia 4 de setembro.

Tudo aconteceu muito rápido. No dia 05 de agosto o famoso jornalista e político antigetulista Carlos Lacerda sofreu um atentado em frente à sua residência, rua Tonelero, Copacabana, Rio de Janeiro. Carlos Lacerda era amigo de Rachel de Queiroz. Apesar de ter escapado apenas com o pé ferido a bala, Lacerda presenciou a morte de seu guarda-costas, o major da Aeronáutica, de nome Rubens Florentino Vaz.

A notícia foi imediatamente divulgada pela imprensa. O Diário de Notícias declarava que o país se sentia insultado com o assassinato, O Globo trazia todos os dias “novas revelações sobre o revoltante atentado”. No Correio da Manhã destacava-se a multidão que acompanhou o enterro do major e o Diário Carioca exaltava: “Povo chora, ajoelha e grita na rua”⁴. Como não poderia deixar de ser, a suspeita recaiu inteiramente sobre o presidente da República ou alguém próximo a ele. Nos jornais antigetulistas, as Forças Armadas eram incitadas a se manifestarem em relação ao episódio, sendo consideradas o único instrumento capaz de derrubar o governo.

Sob tamanha pressão e em solidariedade ao colega assassinado, a FAB entrou em rebelião contra o presidente, ao mesmo tempo em que prosseguia as investigações sobre o crime da rua Tonelero. Provada a participação da guarda pessoal de Getúlio Vargas no atentado contra Lacerda, militares da Aeronáutica, Marinha e Exército entregaram um documento pedindo a renúncia do presidente nos dias 22 e 23 de agosto. Até seu próprio ministro da Guerra, o general Zenóbio da Costa, temia não poder mais controlar a situação de revolta militar.

Diante da proposta de licenciamento do cargo até o fim das investigações, Vargas cedeu, ainda que contrariado. Mas quando os militares mostraram-se intransigentes, exigindo sua renúncia, o presidente recolheu-se aos seus aposentos, esperou a noite chegar, colocou seu pijama listrado e disparou um tiro certeiro contra o peito. Não sem antes deixar uma carta testamento que dramatizaria ainda mais o fim de sua longa trajetória política.

Getúlio Vargas era então um senhor de 71 anos, além do maior símbolo nacional que o Brasil já tivera, e sua carta acabou por se tornar o primeiro manifesto do trabalhismo brasileiro. No dia 4 de setembro, anacronicamente, a crônica racheliana ainda estava discursando sobre o atentado contra o major da Aeronáutica: “e sobre esse crime, nesta hora atrasada, que mais resta a dizer? Apenas constatar que poucos homens, quando caem mortos, provocam um eco tão grande de cólera, dor, indignação, vergonha, qual foi o eco da morte do jovem aviador assassinado. Dizer que o Brasil inteiro pôs luto, que o Brasil inteiro até este momento ainda se sente no abalo e na angústia do primeiro dia do atentado, esperando que justiça seja feita e remédios eficazes se apliquem aos males provocados pelo hediondo sucesso”.Rachel de Queiroz esperava que os responsáveis pelo crime já estivessem presos quando a crônica fosse publicada.

Irônico pensar que, no momento em que Rachel de Queiroz publicou estas palavras, a morte mais comentada na imprensa já era outra. Naquela data, a população indignada com o suicídio do presidente Vargas, em 25 de agosto, já tinha saído às ruas com paus e pedras, atacado jornais da oposição liberal, a Embaixada dos Estados Unidos, bancos e empresas norte-americanas, além de tocar fogo em caminhões. Escolas cancelaram as aulas, sindicatos decretaram greve, passeatas e protestos aludindo ao imperialismo americano pipocaram por todo o país. Carlos Lacerda, mancando de um pé só, refugiou-se primeiramente na Embaixada dos Estados Unidos, sendo em seguida transportado de helicóptero até um navio de guerra ancorado na Baía de Guanabara.

Pela primeira vez, a crônica racheliana era publicada totalmente fora de contexto e, ao aludir à importância de uma morte por ela sentida, parecia, na verdade, comentar a outra, por ela tantas vezes desejada. Anacronicamente, afirmava a autora em 4 de setembro: “As eleições estão próximas, feliz, felicíssimamente. De modo que, seja qual for a solução política que os dirigentes do país deem a este terrível caso, o povo, nas urnas, há de confirmar a sentença do Judiciário”. E pensar que, com um só ato, um só tiro no peito da nação, Vargas acabou com as esperanças que já começavam a se desenhar nos olhos da oposição. Através de seu suicídio, Vargas e aqueles que se consideravam seus herdeiros políticos saíram mais fortes do que nunca.

Aos 80 anos, Rachel de Queiroz lembrava-se muito bem do efeito que a morte de Getúlio Vargas provocou nela e na oposição: “Foi uma carta de palanque. E a gente sentia o aproveitamento político do suicídio (...) "Esse filho da puta! Nem morrendo o homem eu desagravo".

Em 1954, o que restou à escritora cearense foi comentar os últimos acontecimentos na revista O Cruzeiro, mas com muita moderação, “esperando que as emoções serenem, que os desolados sequem o choro, e, principalmente, que sejam contidos os exploradores da emoção popular, os aproveitadores e negociantes do drama”. Rachel acreditava naquele momento que, desaparecendo Getúlio, desapareceria a política que ele corporificava e levaria ao desespero aqueles que a ele se filiavam: “esperemos que esta era malfadada de perturbação, de medo, de corrupção política, de dramas subterrâneos, de democracia inquieta, insegura e ameaçada, seja plenamente uma era que passou”.

Mas a história seria toda outra. O Brasil viu, a partir da morte de Getúlio Vargas, a ascensão exponencial do trabalhismo como uma de nossas mais importantes culturas políticas. Em grande parte, o golpe de 1964 foi também um golpe contra ele. Acompanhando a trajetória política de Rachel de Queiroz ao longo do século XX, percebemos o modo como parte da elite intelectual de seu tempo acabou por escolher a solução autoritária como a única forma de eliminar seu principal inimigo político.

Já em relação à crônica, o que nos resta dizer. Acredito que neste nosso tempo de imediatismos, não podemos deixar de considerar o poder das palavras, em diálogo com aquele velho conto popular: é impossível juntar as penas, quando já foram espalhadas pelo ar.

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Notas:

1 QUEIROZ, Rachel de. Votar. O Cruzeiro. 11/01/1947, p. 90. AFBN.
2 FERREIRA, Jorge. Op. Cit. 2008. p. 39.
3 QUEIROZ, Maria Luiza de. Entrevista à autora. 17/12/2010. p. 10. Arquivo pessoal.
4 BARBOSA, Marialva. História Cultural da Imprensa: Brasil, 1900-2000. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007, p. 182.
5 FERREIRA, Jorge. Crises da República: 1954, 1955 e 1961. In: __________. & DELGADO, Lucia de Almeida Neves. O Brasil Republicano. Vol. 3. O tempo da experiência democrática. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p. 301-342. p. 309.
6 FERREIRA, Jorge. João Goulart: uma biografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. p. 130.
7 QUEIROZ, Rachel de. A hora dramática. O Cruzeiro. 04/09/1954, p.122. AFBN.
8 QUEIROZ, Rachel de. Entrevista a Isabel Lustosa. Rio de Janeiro: 29/10/1993. p. 53. APIL.
9 QUEIROZ, Rachel de. Sombra e Luz. O Cruzeiro. Rio de Janeiro. 11/09/1954, p. 114. AFBN.

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*Natalia de S. Guerellus é professora adjunta de estudos lusófonos na Universidade Jean Moulin Lyon 3, França, e doutora em História pela Universidade Federal Fluminense. Escreveu diversos livros e artigos científicos sobre a trajetória política de Rachel de Queiroz, como "A velha devorou a moça? Rachel de Queiroz e a política no Brasil" (Appris, 2019). É igualmente tradutora, tendo publicado O riso da Medusa (Bazar do Tempo, 2022), ensaio feminista de Hélène Cixous, traduzido com Raisa França Bastos.