Lima Barreto, comentarista de moda

Série Costa do Marfim - Moda, Abidjan-África, 1993. Foto de Maureen Bisilliat/ Acervo Instituto Moreira Salles.

Lima Barreto foi um dos mais atentos observadores da vida política de seu tempo. Tendo nascido em 1881, ainda no Império, testemunhou muitas transformações sociais de um Brasil em movimento. Ele estava lá no Largo do Paço, meninote ainda, quando a abolição da escravatura foi assinada, por exemplo, e rememorou tudo em “Maio”, anos mais tarde. Foi um crítico contumaz da República durante toda a vida, e sua voz contestadora, empenhada sobretudo contra os privilegiados e os exploradores do sistema, aparece tanto em sua produção jornalística quanto literária.

Bom de vista, Lima conseguiu enxergar além do cenário maior, pescando detalhes da vida urbana naquele fervo de modernização social, e fez deles assunto de crônica. Comportamentos, costumes, hábitos, modas. Sobre os trajes das damas, por exemplo, escreveu pelo menos três vezes na Careta, importante e irreverente revista semanal.

Em “Modas femininas e outras”, o cronista se declara leitor das seções de moda dos jornais, embora confesse já não botar tanto reparo nas mulheres que saíam às ruas engomadas e produzidas. Ele se incomodava com a hipocrisia de certos jornalistas, que estimavam “as mulheres ultradecotadas nos grandes bailes e teatros” mas excomungavam as que assim se vestiam “no meio da rua”.

As críticas conservadoras à revolução da moda não eram novidade. De seu tempo de criança, Lima Barreto resgatou a anquinha e o tundá, peças em voga que davam volumes às saias, armando aquela roda de profusão têxtil. Muita gente as classificava de imorais, embora os adereços não deixassem “ver descoberta nenhuma parte do corpo”. Aliás, muito pelo contrário. Depois vieram o droit-devant, a jupe-cullote “e outras norteações da alma feminina”, igualmente criticadas por gente que via nos panos “provas de impudicícia, de despudor e outras cousas correlatas”.

Imbuído de espírito cívico bastante irônico, nosso cronista propôs que se formasse um comitê para estabelecer “a base de um projeto sobre os comprimentos dos saiotes e dos decotes”. Uma comissão com “sacerdotes e sacerdotisas de todas as religiões”, inclusive as pagãs, “estetas acadêmicos ou não”, e também “alguns negociantes de fazendas, fitas e bugigangas”. O debate seria difícil, mas justificável em nome da “felicidade do país”.

Em “Chapéus, etc.”, o cronista observou como a indumentária moderna estava fazendo a cabeça das mulheres: nos bondes, era comum encontrá-las portando “chapéus de oleados” tão imponentes que botavam “medo a qualquer bombeiro em momento de ataque ao fogo”. O adereço era mais uma extravagância dos “costumes republicanos” que andavam “admitindo tanta coisa nova”.

Nem os dias frios inibiam os desfiles pomposos das senhoras, que andavam por aí “abundantemente” decotadas e protegidas por um cobertor de peles. “Não seria melhor que elas não se decotassem e deixassem em casa o sobretudo de peles?”, indagou o cronista, deixando transparecer que nada entendia sobre moda.

Na crônica “Vestidos modernos”, ele voltou a se espantar com a cornucópia de cores e formas cintilando na vestimenta feminina. Parado por alguns instantes na Rua do Ouvidor a observar o vaivém de um dia comum, Lima achou que estava em pleno Carnaval. As calçadas pareciam um salão “em dias de bailes entusiásticos”: uma moça passou “com um casaco preto, muito preto, e mangas vermelhas”, outra “tinha uma espécie de capote que parecia asas de morcego” e uma terceira “vestia uma saia patriótica verde e amarelo”.

Mais de cem anos depois, não é muito difícil imaginar o que Lima Barreto escreveria a respeito da última edição da São Paulo Fashion Week, inspirada pelo universo do circo, com desfiles remetendo a malabares e equilibristas.