Amizade acelerada

Chico Albuquerque com Corcel na campanha publicitária da Fenaseg sobre seguro de automóveis, Brasil, 1974/05/13. Autoria não identificada. Coleção Chico Albuquerque. Convênio Museu da Imagem e do Som-SP/ Instituto Moreira Salles.

Antônio Maria pedira ao rapazinho do posto que “fechasse cuidadosamente o capô” do carro. Adiante havia uma longa reta e, “por prazer verdadeiro, muito antes de James Dean”, gostava de correr quando viajava sozinho. “A velocidade de um automóvel ao longo de uma reta é, em si, de um romantismo” que lhe preenchia a alma. Pisava fundo no acelerador, tirava o máximo de seu carro e, no curso da estrada, sentia dominá-lo inteiramente. “Não sei de amigo mais íntimo que um automóvel em alta velocidade”, disse. E mais: “Não sei de sentimento de solidariedade maior entre homem e máquina, máquina e homem, ambos gozando o mesmo bem-estar, ambos expostos a igual perigo”.

Pilotar um automóvel fumegante era qualquer coisa que regulava a identidade de Maria. Se, ao dirigir, seus pensamentos não se desenvolviam “com tranquilidade até a beleza”, era sinal de que não estava íntimo de si mesmo o quanto gostaria. Então, pisava menos no acelerador e olhava “mais as árvores e a relva das margens”. Gostava muito dos trechos de sombra na pista – “ou porque as árvores coparam o caminho”, ou porque um morro “escondeu o sol por alguns instantes” –, pois “as sombras das estradas amansam a alma e arrumam a sala de visitas da nossa casa interior”. Todo mundo “tem uma casa interior, que é só sua”.

O cronista estava feliz em “correr e pensar estas coisas” de sua solidão. De repente, porém, viu o capô se despregar “dos ferros que o prendiam” e voar violentamente contra o para-brisa, depois rolar na estrada até cair numa vala. “A morte passou por mim”, pensou Maria, enquanto tentava compreender o que acabara de acontecer. Tinha sido salvo, “milagrosamente salvo”, porque o vidro, mesmo estilhaçado, “impedira que toda aquela ferragem entrasse da boleia adentro” e lhe cortasse a cabeça pensativa.

Em 1947, com só sete anos de circulação, O jipe era ainda uma novidade, sobretudo no Brasil. Na euforia da posse desse “carro revolucionário”, Rachel de Queiroz escreveu algumas impressões sobre seu jipe que, à primeira vista, mais parecia “um automovinho de brinquedo”. Mesmo examinando-o bem não dava para saber exatamente o que era: “o para-choques dianteiro é feito um limpa-trilhos de locomotiva; o traseiro tem um engate de trator, e o motor, aparentemente insignificante, ronca e puxa como um tanque de guerra”. Apesar de “toda aquela fragilidade” aparente e da “lataria chocalhante”, o jipe “é na verdade uma maquininha rija e heroína”.

Os modelos mais moderninhos, “em comparação com os ásperos precursores do tempo da guerra”, já tinham algumas regalias, como capota pra proteger da chuva e assento de estofo “em vez de uma simples lona esticada por cima do ferro”. “Mas não são estes confortos medíocres o atrativo do jipe”: o que ele proporciona “de especial e raro” é a sensação de “leveza e liberdade”. Dentro dele, “a gente fica atuado por um espírito de irresponsabilidade e confiança, uma como certeza de impunidade, um corpo fechado aos riscos”. Sem “luxos nem bonitezas”, o jipe é “viril, espartano, revolucionário” – o ideal para atravessar os recônditos do Brasil, seja “na selvageria da serra ou do sertão”. Talvez lhe faltasse, porém, um pouco da velocidade do Jaguar pilotado por Antônio Maria.

A “volúpia da velocidade”, afinal, é uma vocação do brasileiro, observou Otto Lara Resende ao dar-se conta do sucesso que faz a Fórmula 1 entre nós. Na pista, piloto e carro precisam “se entender de forma tão íntima que se transformam numa terceira entidade, feita de aço e osso, de sangue e gasolina, de coração e motor”. Quem vai na frente, como Emerson Fittipaldi e Nelson Piquet, conduz também a paixão despertada pelo esporte “que junta o homem à tecnologia”. Depois de Piquet, “fomos premiados com essa estrela de primeiríssima grandeza que é o Ayrton Senna”. Aí, foi a hora da Europa afinal se curvar diante do Brasil – “a Europa não, o mundo”.

Aqui, tínhamos “uma plêiade de futuros campeões”, todos já roncando “vitoriosos os motores”. Otto, na época, estava “no auge da admiração pelo príncipe da velocidade”, um dos epítetos que a imprensa francesa deu a Senna – além “de mágico, de extraterrestre e de herói” por conta da “sua busca solitária pela excelência”. O cronista gostava que Ayrton se concentrava “em silêncio todo dia”, como se soubesse que, tendo vindo “de um país que está à margem do resto do mundo”, teria lombadas bem altas à frente. Quem sabe Senna não poderia ser, naquela “hora sombria” que vivia o país no começo da década de 1990, um sinal para nós, “recuperando a confiança em nosso destino, não irmos de ré até a rabeira do mundo”. O Brasil, afinal, “não está condenado a se situar entre os lanterninhas, que diabo!”. E não é que estava certo?