Três baianos

Jorge Amado nas ruas de Salvador, BA, 1959. Foto de José Medeiros/ Acervo Instituto Moreira Salles.

Em Itapuã, bem em frente à Paróquia de Nossa Senhora da Conceição, não muito distante da lagoa escura do Abaeté, está a Praça Caymmi. O local foi batizado, é claro, em homenagem ao mais célebre compositor da Bahia, que cantou sua terra e seu povo como ninguém. Felizmente, Dorival ganhou as flores em vida, como pede o samba, e pôde estar presente na festa de inauguração da própria praça, em 1953.

Além de toda a patota política local, havia uma orquestra com piano e uma porção de artistas, locutores de rádio, jornalistas. Em volta do palco, “povo, povo, povo”, anotou Rubem Braga, que, ao lado de Antônio Maria, também assistia à cerimônia. No alto, “entre nuvens brancas tangidas pelo vento, imensa e solitária, a Lua”. E na frente do palanque, aos 39 anos, “de cabelos brancos e violão embaixo do braço e nome na placa da rua”, Dorival Caymmi.

“Houve muito discurso”, porque a Bahia, “além de ser Brasil, é Bahia”. O melhor, segundo Braga, foi o do prefeito Osvaldo Gordilho, que teve “o bom gosto, a sapiência, a elegância, a caridade, a nobreza, a inteligência e a finura de dizer apenas isto: ‘É com a mais viva satisfação que, comungando com todo o povo da minha terra, considero inaugurada, com o nome de Dorival Caymmi, a praça da Matriz de Itapuã’”.

Por causa de uma pane no transmissor, ninguém ouviu direito a fala de Antônio Maria, que acabou esticando seu Discurso a Caymmi para as páginas da revista Manchete. A alegria em saudar o amigo, um dos mais presentes em sua vida, é emocionante: “Deixa que me orgulhe e me sinta mais gente pela ventura de contigo ter andado, de mãos dadas, por caminhos duros ou macios, em horas de riso ou de tristeza”. Por causa das canções de Caymmi, em qualquer lugar do mundo “haverá sempre um grande desejo de conhecer o Bonfim, de contemplar o silêncio feiticeiro da Lagoa do Abaeté”. Certa vez, no Chile, um motorista de táxi confessou a Maria: “Yo queria ir a Bahia”. O cronista perguntou o porquê: “Para ver lo que tiene la baiana...”.

Num artigo de jornal, décadas depois, Otto Lara Resende se debruçou sobre a obra de outro imenso artista baiano. Em “Esquina, praça, povo”, o cronista se perguntou “como é que Jorge Amado conseguiu ser Jorge Amado”. Sua extensa obra literária, com mais de 40 títulos que nasceram do “inesgotável manancial de histórias” da “matriz baiana”, teve início em 1931, com a publicação de O país do carnaval, romance “vagamente filosófico” escrito aos 18 anos de idade. Desde então, o baiano se tornou “presença constante não apenas nas letras, mas na vida do Brasil”. O seu “vigoroso sopro épico” fez com que se encaminhasse “à militância partidária” da “esquerda ideológica”. Com isso, “conheceu a prisão, o exílio e a censura”, e “não lhe faltou nem a luz de uma fogueira para queimar seus livros subversivos”.

O segredo da carreira numerosa e bem-sucedida, palpita Otto, é uma questão pública: “ele nunca está só”. Impossível pensar em Jorge Amado “sem pensar na multidão de seus personagens, que enriqueceram o registro civil tanto, ou mais, do que o fez Balzac”. Enunciar seu nome, portanto, “é chamar por um monte de gente”. Sua literatura “tem as exorbitâncias e as energias do Brasil”, do povo brasileiro. Por isso, “porque o Brasil é visivelmente brasileiro por obra e graça de Jorge Amado, é possível cantar”. Jorge é “um polo de atração”, “uma praça pública”, “uma fervilhante esquina em que todos se encontram”.

De Salvador, onde viveu por três anos, Antônio Maria escreveu belas lembranças. Uma delas é em homenagem a uma das “famosas quituteiras negras” que tanto marcam “os guias e as histórias” da Bahia. Embora algumas tenham sido “recolhidas às cozinhas de famílias abastadas”, a maioria marcava “as ruas com seus tabuleiros”. E “umas poucas, que tiveram ajuda rica, estabeleceram-se com restaurantes” – caso de Maria de São Pedro, verdadeira artista da gastronomia. “No sobradinho do Mercado Modelo, em frente ao cais dos Saveiros”, o cronista sempre se entregava aos dotes da cozinheira, que “sabia do dendê todos os milagres e consequências”.

Antônio Maria fazia questão de arrastar para lá todos os amigos de passagem pela cidade. Certa vez, ciceroneou a pequena comitiva formada por Rubem Braga, Tônia Carrero e Aníbal Machado, que voltavam da Europa e davam “as primeiras notícias do existencialismo” de Sartre enquanto se fartavam de camarões. Outro que provou as receitas da baiana foi Pablo Neruda, “comedor exagerado de pimentas”, que com o “azeite de galinha de xinxim” escorrendo pelo canto da boca, declamava seus versos com voz grave. Todos tinham passe livre para visitar a cozinha e ver “as postas de peixe embebendo-se no ouro do dendê”.

Quase dez anos depois e já morando no Rio de Janeiro, quando recebeu a notícia da morte da cozinheira, Antônio Maria desejou levar Um botão de rosa a Maria de São Pedro – que, “com certeza, terá um biógrafo e, com justiça, terá uma rua”. Que “não lhe neguem uma placa, numa pequena rua, para que o visitante de amanhã recorde o que dela ouviu, ao ver o seu nome num muro qualquer”. No lado esquerdo do peito, ficaram as memórias dos muitos encontros com amigos em Salvador, “porque a Bahia era uma escala obrigatória, um porto de mistérios, um cais de violeiros, uma feira de contadores de histórias, um cenário de Jorge Amado, uma religião musical de Caymmi, um prato de dendê no sorriso branco de Maria de São Pedro”.

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Nota do Editor: bem a tempo de homenagear os 80 anos de Caetano Veloso, outro magnífico baiano, recomendamos a leitura da crônica “Poeta do encontro”, de Otto Lara Resende, disponível na voz de Eucanaã Ferraz.