Um cafezinho com Otto

Otto Lara Resende, Rio de Janeiro-RJ, 195-. Fotógrafo não identificado. Coordenadoria de Literatura/ Acervo Instituto Moreira Salles.

O escritor Otto Lara Resende nasceu em São João del-Rei, Minas Gerais, em primeiro de maio de 1922. Tornou-se agora, portanto, um centenário. Para a celebração do marco, seria justo destacar sua verve de ficcionista obcecado – passando por títulos como Boca do inferno e O braço direito, que só mais recentemente receberam o devido reconhecimento –, sua pena fina de jornalista, sempre na justa medida da linguagem clara e precisa, e sua devoção à epistolografia – Otto foi um missivista tão dedicado que até virou selo dos Correios em 1994. Não por menos, o volume de sua correspondência é comparável somente à de Mário de Andrade.

Incapazes de dar conta de tudo isso, escolhemos três historinhas de amigos que, cada qual a seu modo, retratam um pouco a personalidade cativante de Otto, tão viva em suas crônicas. Ele próprio, que escreveu um belo perfil sobre si mesmo em 1975, considerava-se, ao mesmo tempo, delicado e violento: “delicado pra fora, violento pra dentro”. Era uma contradição complexa: um falante que ama o silêncio, um amigo solícito e esquivo. “Gostaria de viver os lances, estar presente. E gostaria também de estar ausente, sumido, fora do mundo”, diz o texto compilado em O príncipe e o sabiá.

É esse o gancho de uma crônica de Antônio Maria que, certa vez, perguntou a Nelson Rodrigues numa mesa de bar: “Otto Lara existe?”. Nelson comia peixe frito “meio debruçado sobre o prato”, fitando o “olho disponível” do bicho, quando respondeu, profético: “Tu o verás com os teus olhos, e teus dedos lhe tocarão o espírito”. Mais tarde, na porta da TV Rio, onde Maria trabalhava, Nelson chegou “em companhia de um homem cujos olhos escondiam invisíveis serpentes”. Era Otto, vestindo “um traje inconsútil” e cheirando “a antigos ofícios religiosos”.

O deslumbre da cena fez arder os olhos de Maria, como quando alguém vê “uma aranha nos romances de Clarice Lispector”. Então, Otto – ou melhor, “o estranho homem luminoso” – começou a dizer “coisas tão sábias que, se por ali passasse um agente do DOPS, seríamos todos presos e recolhidos à Invernada”. E a conversa, que mais parece um arrebatamento bíblico, se estendeu um pouco. “Ah, leitor, você não sabe o que é conhecer, em carne e osso, um personagem de ficção. É fabuloso isso de haver personagens de ficção que são pessoas e pessoas que são personagens de ficção”, arrematou Maria. Eis a força da personalidade de Otto.

Paulo Mendes Campos, um dos amigos fundamentais, registrou um episódio em que Otto, embora nas alturas, não está num pedestal: os dois compunham uma comitiva de professores e jornalistas a bordo de um avião. “De repente, não mais que de repente, o avião caiu e eu subi.” Por capricho da gravidade, deram com a cabeça no teto enquanto a aeronave descia, até que “os motores roncaram outra vez, o avião descreveu uma parábola para baixo e galgou para mais alto”. Passado o choque, ocuparam-se dos feridos – “narizes que sangravam, braços torcidos, ombros traumatizados”. Paulo foi poupado, mas um dos professores partiu a clavícula e Otto ficou “com a cabeça trincada”. “Mais pálido que a palidez”, foi recolhido para uma maca, “de onde ficou nos olhando com uns olhos relampejando de espanto”. Anos depois, o próprio Otto relembrou o acidente: “Disseram que sofri perda de substância. De fato quebrei a cabeça, mas nunca soube que substância é essa. Sinto, porém, que me faz muita falta”, escreveu em “O outro foi melhor”.

O susto cortou o barato aéreo de Otto, que passou a ter Medo de avião. Espécie de “Saint-Exupéry-Macunaíma”, o aniversariante “se portava, até aquela data, com uma inconveniência admirável, divertindo-se em amedrontar amigos e conhecidos. Pois terminou ali a carreira do gozador, que amava até as tempestades no ar e se ria a valer com a paúra dos outros”.

De uma geração posterior, José Carlos Oliveira, o Carlinhos, bebeu bastante da fonte de Otto. Nele, admirava sobretudo a conversa: “Sabeis que Otto Lara é o melhor papo deste país. E eu acrescento que ele é o brasileiro que melhor fala, no sentido de que, numa conversa informal, articula com extrema clareza e sensacional construção as frases”. Um raciocínio ligeiro com presença de espírito, comprovável pela pequena amostra disponível na internet das entrevistas que fez para a TV Globo na década de 1970.

Longe do Otto, Carlinhos pontuou outra qualidade do amigo: “Estar sempre disposto a tomar mais um cafezinho”. Mesmo de madrugada, quando a turma anunciava a partida, o anfitrião pedia mais tempo: “Pera aí. Vamos tomar um cafezinho”. E ele próprio passava o café, “aliás delicioso”, e a conversa prosseguia. “Três horas depois, estaremos todos firmes ao lado do Otto”, de pé, conversando. Conversando e tomando um cafezinho.