Quando se pula a cerca

Casal na praia, Rio de Janeiro-RJ, 1950 década. Foto de José Medeiros/ Acervo Instituto Moreira Salles.

Na boca do povo, trata-se de uma atitude da qual um dos efeitos colaterais é o implante, na testa do cônjuge, de um par de pontiagudos e abaulados cones feitos de substância córnea. Cabe numa só e áspera palavra – adultério –, e até tempos recentes (2005) era crime previsto no Código Penal. Sua comprovação demandava um “flagrante de adultério”, procedimento não apenas de mau gosto como, não raro, de consequências mais devastadoras que a traição em si. O consolo é ter servido de inspiração para alguns de nossos melhores cronistas.

“A lei exige uma prova que em si mesma é mais escandalosa e quase sempre mais maléfica do que o crime”, protestou Rubem Braga seis décadas atrás. Sarcástico, propôs que o próprio adultério fosse suprimido, mediante a transformação de homens e mulheres em anjos, entidades que, assexuadas, não teriam por que pular a cerca. Na falta disso, sugeriu que pelo menos se aprovasse o divórcio – o que só aconteceria em 1977 –, como forma de evitar boa quantidade de sanguinolentas tragédias conjugais favorecidas pela rigidez da lei. O cronista reivindicou, ainda, o direito de requerer anulação do flagrante quando o cônjuge que o solicitou presenciasse a cena. Em A voz, despejou sua justa ira numa criatura que, com um telefonema anônimo, levara uma esposa a flagrar e matar o marido, que se enredara com outra. “Sua voz ao telefone era firme e tranquila, precisa e clara, até ligeiramente alegre”, rugiu ele contra quem dedurou. “Sua voz de anjo – e de hiena.”

Também Antônio Maria criticou a armação de flagrante, ao comentar, em Adultério e considerações, uma ação policial que envolvera um almirante supostamente ancorado aos pés de dama alheia. Nem traição teria havido, sustenta o cronista, pois quem abriu a porta para a polícia foi a mulher acusada de infidelidade. Maria pediu que se respeite o adultério, nem que seja por antiguidade, já que ele existe desde que o mundo é mundo. De resto, ponderou, não é impossível que um homem saia ganhando ao ser traído: há maridos que, depois de enganados, “melhoram de vida”, passados que são, não para trás, mas para a frente...

O mesmo tom galhofeiro está em A fidelidade e o queijo, em que o Maria reproduz confidências de um conhecido seu. Chegando em casa em horário não habitual, o camarada deu de cara com a mulher e um vizinho. Não na cama – à mesa, tomando café com queijo. Consultado, o cronista disse não ver problema, embora lhe parecesse que o queijo é mais comprometedor do que o café, quando tenha sido ofertado pelo visitante.

Rolou ou não rolou? No pantanoso terreno das relações mais ou menos amorosas, a interrogação tem cabimento. E não são raras as histórias em que paranoia, desconfiança e ciúme levam um dos dois a adornar a própria testa com chifres brotados da pura imaginação. Há casos em que jamais se saberá se houve mesmo traição – indefinição da qual o Dom Casmurro de Machado de Assis segue sendo exemplo clássico. 120 anos depois da publicação do romance, ainda há quem discuta se a bela Capitu traiu ou não o marido, Bentinho, com o melhor amigo dele, o Escobar. Não tem fim a lista dos que vêm desde então metendo a mão nessa cumbuca, sem que chegue a uma conclusão unânime.

Um deles, Otto Lara Resende, dedicou três crônicas ao intrigante mistério – e como troco recebeu puxões de orelha de quem não admite a ideia de que Capitu tenha sido infiel. Não traiam o Machado, pediu a esses o cronista – e, com a intimidade de quem leu e releu o livro a vida inteira, enumerou capítulos (99, 106, 113) nos quais a infidelidade da moça lhe pareceu insofismável. Invocou o testemunho do amigo Dalton Trevisan, outro que considera inaceitável a versão segundo a qual tudo não passou de ciúmes infundados da parte do Bentinho.

Pra quê! A crônica provocou tais reações que dias depois Otto precisou voltar ao assunto, agora com Inocente ou culpada. Sem mudar de opinião, deixou ainda mais clara a sua disposição para o diálogo. “Trocar uma gravata vermelha por uma gravata vermelha não tem a menor graça”, argumentou. Otto se vê mais maleável que na mocidade, quando dizia que “da discussão nascem os perdigotos”, não a luz. “Sem fair play, é uma chatice”, facilita ele. Está disposto a conversar – mas deixa claro: não aceitará jamais “o cinto de castidade que impuseram à Capitu.”

Fim de papo? Que nada. Apenas dois dias se passaram e Otto Lara Resende retoma a polêmica, dessa vez com Capitu e o meu ônfalo, em que registra críticas de dois professores. Um deles o considerou “algo desatualizado”. O outro denunciou o que seria “a contemplação do próprio umbigo” – substantivo do qual é sinônimo o tal “ônfalo” engastado no título. Com irônica leveza, Otto admite que em São João del-Rei, a cidade mineira onde nasceu, deveriam ter enterrado, além do umbigo, o seu “ímpeto polêmico”.

Nada como o bom humor – e é dele que se serve Rubem Braga em mais de uma crônica sobre adultério. Diário de um subversivo – 1936, cujo pano de fundo é a repressão que se seguiu à Intentona Comunista de 1935, tem como personagem um jovem jornalista (o próprio Braga?) que, procurado pela polícia política, vive com nome falso numa pensão carioca. Quando a barra pesa, busca refúgio sob o teto de um companheiro de militância, o Edgar, marido de Alice – pessoa esta “muito esclarecida” cujos encantos farão o hóspede mudar de problema. Com “os nervos arrebentados”, escreve em seu diário: “Se eu tivesse qualquer coisa com essa mulher, seria o último dos cachorros.” O próximo registro, no dia seguinte, não poderia ser mais breve e esclarecedor.

Em mais de uma ocasião o tema do adultério recebeu de Rubem Braga um tratamento impregnado de lirismo banhado em melancolia. É o tom de A praça – bela crônica que além de ler se recomenda ouvir, na interpretação de Elizama Almeida –, na qual a revisita a um local público lhe traz a “impressão estranha, forte e absurda, de estar repetindo um momento vivido”. A vista de um casal de amantes faz reprisar em seu coração “o instante de outros anos, com uma verdade lancinante”, naquela praça em que “fui pária, namorei roda de bonde para suicídio”, “imperador feliz do reino mais belo”.

Igualmente delicada é Um homem, em que alguém “triste, magro e maduro”, vestido de preto, suspende o passo na calçada para contemplar a moça de maiô azul – sua “amada”, sua “namorada”, fantasia ele. Na areia, ela conversa com outra moça; na certa, rumina o pobre-diabo, está “caçoando de seu amor de homem casado por moça solteira”, de “seus galanteios antiquados, de sua tristeza, de sua angústia”. É uma história bem contada, tanto quanto Um diplomata exemplar, de Paulo Mendes Campos, sobre a paciência e sabedoria com que um cavalheiro vivido tenta amenizar a dor moral de um parente mais jovem, juiz de direito, “cidadão probo e bom pai de família” que, na contramão dessas virtudes, vê seu casamento soçobrar desde que foi flagrado na cama com a cozinheira.

Não se deixará de ler, por favor, três outras histórias deliciosamente desfiadas por Paulo Mendes Campos. Numa delas, Casa de pensão (que no livro Homenzinho na ventania se chamará “Palacete Mon Rêve”), ele relembra um imóvel decadente onde morou quando chegou ao Rio, aos 23 anos. Além de dividir quarto com uma hóspede, separados os dois por um tabique de papelão, um dia Paulo tem que aguentar, vindo de um quarto ao lado, o fragor de uma briga de casal, com choro, desaforos e sopapos. O homem dera para frequentar a cama da melhor amiga de sua companheira. Repórter além de cronista e poeta, Paulo sobe no peitoril da janela e, sendo o prédio uma construção em L, dali assiste a lances cruciais do entrevero conjugal.

Em outro pequeno conto, o protagonista é um espertinho que, habituado a uma rotina entre o bar e o lar, com escapulidas para desfrutar dos encantos de uma loura, decide passar duas semanas em sua companhia, sem interrupções conjugais. Engambela a mulher com uma fictícia viagem de trabalho a Buenos Aires. Planeja a traição em todos os detalhes – sem saber que de um deles resultará a sua perdição.

Na terceira história, por fim, ambientada nas profundas de Minas Gerais, um coronel viúvo e cinquentão, mas também concupiscente, resolve um dia buscar lã – e, como no velho dito, volta tosquiado. A lã, no caso, era a Mariazinha, mulher de um amigo e vizinho, “cabrocha bonita e limpa”. Será tarde quando o coronel perceber que se meteu num negócio de burro, em mais de um sentido...