O chato, bom apenas como assunto

Noivos, São Paulo-SP, 1974. Foto de Madalena Schwartz/ Acervo Instituto Moreira Salles.

O chato faz muito calor. Foi Jayme Ovalle quem disse, e a observação tem validade universal, se aplica até aos esquimós, a tiritar em seus iglus, pois da chatice não há povo que escape. E haja leque e ar-condicionado para encarar essa deplorável porção da espécie humana, infelizmente numerosa, merecedora de um livro inteiro, o best seller Tratado Geral dos Chatos, de Guilherme Figueiredo (1915-1997). Difícil saber quem comprou mais, se os chatos ou não-chatos. O problema é distinguir um do outro. Foi o que deu a entender Paulo Mendes Campos em Tipos exemplares, sobre categorias variadas de gente aborrecida, azucrinante, aperreante, fastidiosa, importuna, maçadora, tediosa ou sacal, para citar apenas alguns dos 32 adjetivos à disposição no dicionário Houaiss. Olha o que disse o Paulo, no afã de ser equitativo: “Damos o nome de chato ao indivíduo que produz um tipo de chateação diferente do nosso.” Se assim é, resta a cada um de nós admitir humildemente a triste condição, e tratar de minorar seus efeitos deletérios sobre o próximo. O consolo é saber que costuma render crônica divertida.

E pode ser útil. A citada “Tipos exemplares”, por exemplo, nos ajudará a criar defesas contra, por exemplo, o chato Nec plus ultra, aquele que não deixa você contar vantagem: “Se vais a Paris no ano que vem, ele vai dar a volta ao mundo na próxima semana”. Ou o Ad usu, pessoa que, em visita a um amigo, nunca deixa de exclamar: ‘Que apartamento simpático!’ Para ela, o menino ‘já está um homem’ e a menina ‘já está uma moça’.”

Craque na descrição de tipos, sejam eles malignos ou benignos, Paulo Mendes Campos foi certeiro em A arte de ser infeliz, retrato de um chato quimicamente puro. Criatura que, “por princípio”, toma banho frio, mesmo que seja inverno. Sabe o que é enfiteuse e pignoratício, e se refere à mulher como “esposa”. É “o primeiro a saber que abriram e fecharam Fulano” e que “não há nada a fazer”. Vê ameaças por todos os lados: “ao norte, pela queda do cabelo; ao sul, pela desvalorização da moeda; a leste, pelo acúmulo de matéria graxa; a oeste, pela depravação dos costumes.” O grande mal do homem perfeitamente infeliz? Não, nada de sabotar o gran finale; desça devagar, saboreando cada palavra, rumo à última pérola dessa crônica...

Tem tudo a ver com esse camarada o personagem de Antônio Maria em O pior encontro casual. Deus, ou mesmo o Diabo, nos livre de topar com o “homem autobiográfico” – aquele que faz “a crônica de si mesmo”, nela incluída a rotina de tomar bem cedo um “bom chuveiro”. Frio, pode-se apostar. Em seguida, um café da manhã bem mais copioso do que o nosso. “Como são desprezíveis as pessoas que falam no ‘bom chuveiro' ou tomam 'café reforçado' esconjura o cronista. E não é só: o “homem autobiográfico” chama a mulher de “minha senhora” e enche o peito para anunciar: “À noite, eu sou da família!” Mais exatamente, “janta de pijama e deita no sofá com as crianças em cima.”

Chatice insofismável, embora menos ostensiva, é do sujeito com “cara gorda e mole de padre” a quem Rubem Braga dedica Força de vontade. Para começar, não bebia, não fumava – impoluto, não tinha vício algum. Tampouco “esposa” ou “senhora”, nem simplesmente “mulher”. Quanto a sua conversa, bem, ele “falava com precisão” sobre assuntos empolgantes como “o custo de vida em São Paulo”. Morava com os pais, que sustentava com o seu trabalho (talvez preferisse dizer “com o suor de seu rosto”) – o que para ele significava a realização de três “ideais” na vida. Conquistou diploma universitário, não importando qual. Também o fez sentir-se vitorioso ter viajado para fora do Brasil – e com que economia de tempo e dinheiro: num só dia, pôs um pé no Paraguai e na Argentina. Cumpridas as três metas, como se sentiu o nosso homem? Ah, que falta pode nos fazer um ideal! Mas deixemos que nos conte o Braga.

Menos desditoso é CF, o chato-felicidade, tipo que José Carlos Oliveira nos apresenta. Nem precisava, você o conhece de sobra: “aquele cara que senta na sua mesa sem pedir licença e começa a falar de um assunto que não lhe interessa”. Imagine o que isso significava para quem, como o Carlinhos, passava boa parte de seu tempo no boteco ou restaurante, e que inclusive para lá levava a sua máquina de escrever – à semelhança, aliás, do que fazia o Antônio Maria, que ia e vinha com a sua no automóvel, podendo a crônica nascer ali dentro mesmo, numa beira de calçada. Dureza, o CF, de quem naturalmente se recomenda manter distância – embora isso nem sempre seja possível. Provavelmente não funcionará mandá-lo àquela parte; mais vale irmos nós mesmos – com a condição, é claro, de que ele não nos acompanhe.

Fora de seus domínios, quer dizer, do botequim, Carlinhos Oliveira em mais de uma ocasião teve que aturar chatos motorizados, ao lado dos quais circulou pelas ruas na Zona Sul do Rio. De um deles quase todos nós já fomos vítimas: o taxista ensandecido para quem mão e contramão vêm a ser a mesma coisa. O cronista não ficou menos chocado no dia em que viajava com um conhecido pela avenida Atlântica, que, naquele começo de anos 1970, tinha sido alargada e ganhara uma segunda pista. Tudo maravilhoso, avaliou Carlinhos – mas não deveria haver umas passarelas para o ir e vir da praia? Já pensou o risco de atropelamento para um moleque praieiro de 11 anos? “Menino é para ser atropelado mesmo”, rosnou o tipo, embora pai de família, “culto, viajado, psicanalizado” – e foi adiante: “Não há nada mais chato do que menino na praia. Ele joga areia na gente, espadana na água e molha os cabelos da mulher da gente.” A pá de cal: “Menino não tem nada que fazer na praia”.

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Seriam a chatice e a esquisitice mais encontradiças entre machos do que em fêmeas? Fique o tema para discussão em ringue apropriado – mas não se feche a conversa sem amostras de que nesse particular talvez exista certa igualdade entre os gêneros. Pois até para que um chato ou chata se dê bem numa relação, é indispensável que haja na outra ponta alguma compatibilidade. Mas haverá alguma chance de acasalamento para a personagem de Antônio Maria em Descrição? Avalie você: ela dorme com meias de homem, e chama o amor “de maneira tão estranha que parecia não ter nascido dele”. Bebida, só vinho do Porto, e desde que no cálice venha mergulhada uma gema de ovo. Dançar com homem, só se o par for o seu pai. Talvez se desse bem com outro personagem do Maria, Adamastor, o estranho homem puro, para quem “homem que dança bem não tem caráter”, visto que pessoa do sexo masculino “precisa dançar apenas direitinho”. A que “todo bom orador é, no fundo, mau pai de família.” Mais? “Sai da sala onde há homem de pernas cruzadas e lhes aparece (entre a calça e a meia) os cabelos da canela”.

E há, por fim, a malviajada, de quem Antônio Maria faz um retrato impiedoso. Tão onipresente que nesse particular foi superada apenas por Deus – e olhe lá, pois parece ter havido casos em que ela “chegou cinco minutos antes do Criador”. Para explicá-la, só mesmo “uma infância marcada por traumas e mais traumas”, e aqui o cronista arrisca uma explicação: trata-se, quase sempre, de “menina que viu o pai no banheiro com a porta aberta”. O fato é que a malviajada “nunca está sentada à mesa de bar, de restaurante ou de jogo sem que seu pezinho não esteja em cima ou embaixo do sapato de um dos presentes. Homem, de preferência.” Usa perfume de cinco em cinco minutos. Faltam seis meses para a viagem e ela já atormenta os circunstantes: que roupa devo levar? Na volta – sim, a criatura volta... –, chega com fanfarronices do tipo “descobrimos um bistrozinho na Rive Gauche que é um amor”.

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Cumpre avisar que, uma vez mais, o papo continua, até para fazer justiça a quem, como você, passa a léguas da chatice.