Tipos de todo tipo

Meise, São Paulo-SP, 1976. Foto de Madalena Schwartz/ Instituto Moreira Salles.

Nada como um bom cronista, e aqui temos um punhado deles, para apanhar no chão do dia a dia alguma aparente miudeza, e a partir dela compor um palmo de prosa capaz de atravessar a circunstância e, sem data de validade, seguir encantando leitores presentes e futuros. Impressões, sutilezas, pequenos fatos, ou mesmo fato algum. E, é claro, personagens, pois também não há como um bom cronista para garimpar tipos interessantes no cotidiano.

É o que não falta, benza Deus. Gente notória ou obscura, figurões, figurinhas, – aqui temos de tudo. Quem julgava saber tudo sobre, digamos, Severo Gomes (1924-1992), empresário e político paulista falecido naquele acidente de helicóptero em que morreu também Ulysses Guimarães, e com os dois, suas mulheres, quem achava conhecer tudo sobre esse homem público diferenciado haverá de se surpreender com o Severo Gomes que o amigo Otto Lara Resende nos revela em A sua vida continua. Um conversador tão fascinante que numa noitada em sua companhia “dormir era um desperdício”; “a conversa atrasava o sol”. Um sabedor – “do capim gordura ao Dante, nada ignorava, estava a par de tudo”. De quebra, dono de “memória capaz de suprir os apagões dos outros”.

O mesmo Otto, em Mozart está tristíssimo, nos traz um Murilo Mendes (1901-1975) menos visível em sua preciosa obra poética, das melhores, aliás, que nos deu a segunda geração do Modernismo: “figura legendária, com histórias que marcaram a linha de seu temperamento original”, do qual há uma fartura de ilustrações. O poeta mineiro levou sua admiração por Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) ao ponto de lhe dedicar um de seus livros, As metamorfoses, de 1944. Quando, em 1938, tropas nazistas invadiram Salzburgo, cidade natal do compositor austríaco, Murilo enviou telegrama de protesto a quem? a Adolf Hitler. Em meio a um concerto no Teatro Municipal, no Rio de Janeiro, como a interpretação de obra mozartiana lhe parecesse medíocre, ele não teve dúvida: abriu o guarda-chuva na plateia. Para melhor contemplar o azul de um céu carioca, não hesitou em se deitar no asfalto da avenida Rio Branco.

Recém-convertido ao catolicismo, Murilo Mendes causou pasmo na Igreja da Candelária ao abençoar solenemente ninguém menos que um cardeal italiano, e não qualquer: Eugenio Pacelli, dali a pouco papa Pio XII (1876-1958). Não está na crônica de Otto, mas vale menção o dia em que o poeta parou, embevecido, diante de um modesto armarinho, e bradou à dona do negócio: “Parabéns pelos retroses!” Em outra ocasião, ao ver uma senhora na janela, em Botafogo, se pôs a aplaudir ruidosamente a cena, para pasmo da criatura, que, assustada, fechou rapidamente as venezianas.

Paulo Mendes Campos também escreveu a respeito de tipos famosos de seu tempo, entre eles Vinicius de Moraes, inspiração para um punhado de crônicas, meia dúzia das quais disponíveis em nosso Portal. Se ainda não leu, comece pelas ótimas histórias reunidas em Plim e plão. No caso de Luís Camilo de Oliveira Neto (1904-1953), sob o impacto ainda da morte prematura deste brilhante e combativo intelectual mineiro, amigo de infância do poeta Drummond, Paulo pôs de lado a face pública do falecido e desfiou lembranças do inesquecível vizinho que tivera em Belo Horizonte.

De sua própria família, o poeta e cronista mineiro fez o favor de nos apresentar duas fascinantes personagens femininas. Uma senhora, sobre a avó Estefânia, abre para nós espaço na mesa que se armava em seus aniversários, no interior de Minas. Naqueles almoços em que ela cuidava do menor detalhe, quem ganhava o melhor presente não era a aniversariante, e sim seus convidados, beneficiários de inesquecíveis maravilhas de forno & fogão, tão despretensiosas quanto refinadas. Já Maria José vem a ser a mãe de Paulo, figura fortíssima, “meiga quase sempre, violenta quando necessário”. Sob o olhar embasbacado do filho, então com cinco anos de idade, ela saiu, de revólver na mão, atrás de um ladrão que invadira o quintal da casa. Admiradora de São Paulo e Santo Agostinho, dona Maria José “acreditava que era preciso se fazer violência para entrar no reino celeste”. Mas certamente era da paz, e não se furtava aos prazeres do mundo: “Poucas horas antes de morrer”, conta o filho, “pediu um conhaque.”

Bem menos gostável era a pintora francesa Marie Laurencin (1883-1956), a quem Rubem Braga, vivendo então (1950) em Paris, dedicou um texto em que crônica e reportagem se combinam, saboroso nos dois gêneros – e, no que diz respeito ao jornalismo, bem pouco convencional, para dizer o mínimo. Como, de resto, boa parte dos escritos bragueanos que Augusto Massi selecionou para a joia intitulada Retratos parisienses, lançamento de 2013 cuja leitura aqui se recomenda enfaticamente. (Compre, leia e, se não gostar, o autor destas linhas garantirá o reembolso – e em seguida romperá relações não só literárias com o leitor...).

A esta altura, jamais se saberá se entrevistar a artista foi ideia do cronista ou pauta do editor de artes do Correio da Manhã, jornal carioca onde colaborava. Veja só a indagação que se faz o Braga já na primeira linha: “Devo dizer que Marie Laurencin foi uma decepção para mim?” Mais adiante, admite: podia ela não ser uma grande pintora, mas inventou um lugar para si, e “o ocupa virtualmente sozinha”. Embora considere que “não há ninguém mais fácil para se escrever contra”, o cavalheiresco Braga acha que não vale a pena: “Algum dia, ao menos por um instante, ela já pôde encantar a cada um de nós com um gesto indolente de uma de suas jeunes filles perdida em um mundo rosa e azul esmaecido, essas cores suavemente lésbicas.” Na opinião desse afiado amante e conhecedor das artes visuais, assunto de muitíssimos escritos seus vida afora, Marie Laurencin nunca fez nada “a não ser raros retratos e umas naturezas-mortas de um decorativo bonitinho”. Ele sabia que entre pintores “há bem um lugar para essa fabricante de licores adocicados e finos”. Além disso, concedeu, por irrelevante que fosse, se ela não existisse “nosso tempo ficaria mais feio”.

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Rachel de Queiroz foi outra que em mais de uma ocasião cronicou a propósito de figuras conhecidas. Uma delas, o jurista Clóvis Bevilacqua (1859-1944), que, tendo sido “sábio” e “talvez santo”, fez por merecer entrada no panteão dos brasileiros excepcionais. Em tom menos ribombante, ele viveu um episódio menos conhecido que sua coestaduana Rachel desenterrou em Clóvis. Membro fundador da Academia Brasileira de Letras, ele quis, em 1931, que também sua mulher tivesse ali uma cadeira. Amélia era escritora de verdade, com obra numerosa e apreciada – mas a iniciativa do cônjuge empacou no entendimento que a maioria dos acadêmicos deu ao substantivo masculino “brasileiros” constante no regulamento. Sentindo-se como que apunhalado pelos confrades, o marido decidiu nunca mais pôr os pés na Academia, cujas normas, para seu desgosto adicional, não admitem renúncia: sair da ABL, apenas por motivo de falecimento.

Certeira no uso da língua, nesta crônica a escritora cearense mostrou-se menos destra no manejo dos números, pois comemorou em 1957 um centenário de nascimento que só transcorreria em 1959.

Ah, sim, uma curiosidade: em 4 de agosto de 1977, exatamente duas décadas depois, Rachel de Queiroz conquistará aquilo que a colega Amélia não conseguiu em 1931, tornando-se a primeira mulher a ser admitida no impermeável Clube do Bolinha que por 80 anos foi a Academia Brasileira de Letras.

(Em tempo: o ponto final pingado acima não é tão final assim. Sendo vasto o time dos tipos interessantes arregimentados pelos nossos cronistas, saiba que vem aí nova rodada.)