O bloco dos cronistas

Vinheta publicada em Careta, 15.02.1947. J. Carlos/ Coleção Eduardo Augusto de Brito e Cunha/ Instituto Moreira Salles

Para Antônio Maria, houve um Carnaval em que a ressaca veio antes da farra – se é que para ele teve farra naquele fevereiro de 1941, mês no qual, faltando “uns oito dias” para a folia começar, uma confusão doméstica levou o jovem (20 anos recém-completados) pernambucano a amargar uma noite de cana no Rio de Janeiro. A encrenca só não foi maior, conta ele em “A senha do sotaque”, porque... – bem, não antecipemos o inesperado desfecho da história. É possível que o Maria, por detrás das grades, tenha reencontrado um amargo porém essencial ingrediente das celebrações de rua que viveu em sua terra quando menino e adolescente: “Não tenho a menor dúvida”, diz ele em “Carnaval antigo... Recife”, “de que aquilo que fazia a beleza do Carnaval pernambucano era a revolta”.

Clarice Lispector, que lá viveu até se mudar para o Rio, aos 14 anos, guardou recordações fortes de festejos dos quais não chegou a participar, mas que a marcaram fortemente, inclusive o espetáculo das “ruas mortas onde esvoaçavam despojos de serpentina e confete”, nas quartas-feiras de Cinzas. Como explicar – pergunta-se ela décadas depois, em “Restos de Carnaval” – a “agitação íntima” que a engolfava quando se aproximava a festa, da qual, na verdade, pouco participava, limitando-se a olhar “ávida, os outros se divertirem”? De tão “sedenta”, relembra, “um quase nada já me tornava uma menina feliz”. Mas houve, aos oito anos, “um Carnaval diferente dos outros”, no qual, pela primeira vez fantasiada, a menina Clarice saboreou a iminência de “ser outra que não eu mesma”.

Em Paulo Mendes Campos, ficaram lembranças pesadas de um forrobodó carnavalesco na infância. Entre os três e os quatro anos de idade, vivendo então num arraial mineiro, ele errava num mar de pernas de adultos a dançar, e experimentou uma decepção vitalícia, narrada em “Um saco de confete”, para a qual, anjo subitamente tornado em capetinha, engatilhou tremenda vingança. Por maior que fosse, porém, o ressentimento do menino não comprometeu sua paixão pelos fevereiros que viriam – não fosse ele nascido num 28 deste mês “truncado e biruta”, “ovelha furta-cor do zodíaco”, no qual, revelará em “Rio de fevereiro”, identificava um “certo encanto dionisíaco”.

Rachel de Queiroz, em “Confete no chão”, colheu no Carnaval de 1948 um curioso personagem, certo Mariano, que “não tem mulher nem amores, nem trabalho nem ambição, nem dinheiro, nem roupa, nem casa”, e que, mesmo amando o Carnaval, dele participa como livre atirador, pois não gosta de sujeitar-se a regras que há em todos os blocos. “Chega o Carnaval”, descreve Rachel, o fulano “arranja uma camisa de meia, um boné de marinheiro e cai na orgia”. Daquela vez, além de muito beber, cantar e pular, o Mariano “até amar amou, uma cabrocha fardada de soldadinho” do inseticida Flit, para chegar à quarta-feira de Cinzas escornado nas areias da praia.

Quanto a Otto Lara Resende, se não há registro escrito de que tenha um dia saracoteado num baile de Carnaval, ou se esbaldado num bloco de rua, ele era, também nesse departamento, um observador atento e fino. Encerrado o Carnaval de 1992, o primeiro que passou no Rio em muitos anos (e também o último, pois morrerá no final de dezembro), Otto falou dele em duas crônicas consecutivas. Em “Arcaísmo e esparadrapo”, meteu sua divertida colher no escândalo provocado, durante o desfile da Beija-flor de Nilópolis, pelo descolamento de retalhos de esparadrapo que haviam sido estrategicamente aplicados no corpo de um destaque da escola, daí resultando a exposição daquilo que, na linguagem empolada da liga das agremiações carnavalescas, se chamou de “genitália desnuda”.

Na outra crônica, “Sermãozinho de Cinzas”, Otto elogia a iniciativa da Mangueira de homenagear Tom Jobim – com uma ressalva: “Faltou o urubu”. Sim, essa ave ciconiiforme da família dos catartídeos cujo nome popular o Maestro Brasileiro tomou como título para um de seus melhores álbuns. “Estava na hora de exaltar o urubu, nossa águia de luto”, disse o Otto. Luto? Para quem não estava lá, ou não se lembra: naquele ano de 1992, ia no auge a podriqueira do governo Collor.

Rubem Braga, por fim, em “Carnaval”, sob a forma de carta endereçada a uma “querida amiga” em Paris, critica o presidente Getúlio Vargas, que, eleito em 1950 para o cargo de que havia sido apeado em 1945, teve, em seu primeiro ano de governo, “o maior cuidado em não fazer coisa alguma”. A vida “subiu muito de preço”, informa o Braga, “mas ganhou em pitoresco”. Chegou o Carnaval, acrescenta, e “há pessoas em pânico, fugindo, dizendo que vai haver barulho”. Rubem acredita que não, que tudo vai acabar em “pândega”, e argumenta: “Neste país, minha querida, nem o Carnaval se pode mais levar a sério”.