[8 jun 1957]

A árvore da ciência

Sim, é a velha história da árvore da ciência: melhor não provar do fruto e não saber. Viva a gente, leitor, como você e eu, que só temos uma ideia vaga daquilo que nos ocorre nas entranhas e, enquanto a febre não sobe aos quarenta, a dor não pede gritos e a tontura não vira vertigem, – achamos que tudo vai bem.

Já os tristes doutores, que fizeram o seu reino no mundo das tripas, o seu ofício é o saber, e no saber está a tragédia. Não conseguem dissociar o homem do médico – nem sequer nos braços da mulher amada. Sei de uma dama que, tendo ao colo a cabeça do seu doutor predileto, murmurou liricamente para ele: “Está ouvindo o bater do meu coração?” E ele, erguendo os olhos: “Ouço, sim, meu bem. Por sinal você está com a sua boa aortite...”

Enquanto há mocidade, na casa dos vinte, dos trinta anos, tudo para eles vai bem; mocidade, mesmo em médico, tem queda para se considerar imortal. Mas assim que eles chegam à zona dos quarenta, começam as preocupações. O doutor entra a ser o seu próprio paciente. A se tornar consciente das artérias, do fígado e mais vísceras. Suspeitas de úlcera – de hepatite, de nefrite: as possibilidades são riquíssimas. Contudo, essas suspeitas vagas não são nada, até que o infeliz chega à faixa crucial – a dos cinquenta anos. Porque aí começam as realidades. Ele vai descobrindo, com os próprios sentidos atentos, o desgaste da máquina. A pressão que sobe. O tônus que baixa. A menor tolerância para o álcool. Ninguém mais do que ele tem a consciência progressiva de que algo se muda, algo se extravia – e aos poucos perde a insolência de ser homem, em troca da humildade de ser velho. E assim vai se entregando, vai cedendo – quando um dia, ao tomar a própria pressão arterial...

Mas é melhor contar um caso que exemplifique a tese. Não há como um apólogo (no caso, autêntico) para fazer entendida uma teoria.

Era um doutor, nosso conhecido. Solteiro, ou antes solteirão, pois já fizera os 52. Boa figura, boa prosa, bem tratado – era pessoa que cuidava de si, graças a essa tendência que têm os solteirões de se supervalorizarem, em vista do cerco que ainda lhes fazem as damas, no mercado matrimonial. O nosso herói, ainda no rol dos bons partidos, aproveitava a situação. Tinha as suas amigas, levava-as ao Municipal, às boates (ficava muito bem em black-tie). Convidava-as a jantarinhos íntimos, não sei se tinha gravuras no seu apartamento, mas tinha eletrola e bons discos. Médico, como disse, tinha um serviço hospitalar do qual se orgulhava, pelo qual brigava, – era mesmo a menina dos seus olhos. Esqueci de dizer também que o homem era abastado e bem nascido – o que lhe favorecia ainda mais os êxitos profissionais e sociais. Enfim, não posso afirmar que fosse um príncipe, porque entre outras deficiências menores não sabia dirigir e não tinha automóvel, mas na hierarquia do society podia ser seguramente um marquês. 

Pois um belo dia o nosso homem, ao descer do lotação, defronte do hospital, sentiu uma leve tontura. Foi coisa rápida, com pouco já estava de uniforme, batia um papo, tomava café, brincava com uma acadêmica, dava uns gritos na enfermeira, iniciava a visita na enfermaria. E eis que o primeiro doente (que o detestava), antes de dizer se melhorara da falta de ar, olhou-o bem e comentou: “O senhor hoje está com a cara ruim, hem, doutor?” E a enfermeira, também com ódio, ajudou: “Eu já tinha reparado”. Impressionado com aquela unanimidade que se seguira à tontura, o doutor, terminada a visita foi à sala dos médicos e chamou um colega mais íntimo: “Fulano, vem cá, me tira a pressão”. Fulano zombou, perguntou o que ele estaria planejando para a noite, mas o outro insistiu, tiraram. O paciente logo notou no amigo aquela expressão característica que os médicos pretendem ser de impenetrabilidade e não passa de uma cara muitíssimo agourenta, capaz de assustar o mais bravo. E Fulano falou, grave: “Meu caro, a gente vai ver de brincadeira e sempre acha qualquer coisa. Talvez seja a emoção do exame – por outro lado você já não é nenhuma criança – mas a pressão está a dezesseis”. E Fulano volta ao jocoso: “Cuidado com o programa desta noite!”

Nada mais precisou ser dito. Nosso doutor era suficientemente médico para saber o que significava aquela pressão a dezesseis. E já que entrara a deslizar na ladeira das suspeitas, fez como certos maridos – quis saber tudo. Dosagem de ureia – e o papelinho do laboratório lhe aumentou o frio do estômago: 0,55. Colesterol? Aumentado. Densidade de urina – um pouco baixa. Sim, um pouco. Só um pouco. Tudo passava um pouco do normal, não era ainda a moléstia, a morte – mas era um aviso. E ele resolveu consultar a sumidade. Foi ao consultório do mestre com aquela humildade característica dos profissionais diante do superior técnico. Submeteu-se como um cordeiro. O professor leu os exames, pediu outros, auscultou, mediu, confirmou: “Sim, um início de arteriosclerose, – talvez com ligeiro comprometimento renal, muito encontradiço na idade do colega. Mas com cuidados – higiene, dieta, não pensaremos em coisas sérias por muitos anos ainda, não é mesmo?” E o professor riu, citando-se a si mesmo, com a sua pressão de dezoito a vinte, seus problemas gástricos... Como se aquilo consolasse, um velho com os pés na sepultura, todo o mundo estava vendo!

E estava instilado o veneno. O doutor começou a ler – e de autor em autor foi aumentando as suspeitas. Quem sabe não seria uma nefrosclerose maligna? De qualquer forma, o homem aconselhou repouso e, – primeira etapa, ele tratou de abandonar o serviço, o seu precioso e amado serviço, – mas que o cansava demais. Arranjou uma sinecura, por aí. Bebida também – e renunciou ao uísque. Dieta – e renunciou aos prazeres de gourmet. Para poder renunciar a outras gulodices, renunciou às boates, ao Municipal. Com o passar dos meses, e um ano, e outro, de renúncia em renúncia, o solteirão chibante e bom partido já não é mais que um velho – e cauteloso, e escravo da dieta e dos remédios, escravo das artérias e dos rins – a ter pesadelos cada vez que aumenta um miligrama na ureia, sabedor de todas as hipóteses prováveis, eternamente a temê-las, a espreitá-las, a evitá-las. Enfim, um morto a prestações.

***

E se passaram dez anos nessa agonia, em que o nosso amigo praticamente não viveu.

No mês passado morreu, afinal; de um câncer de pulmão que em dois meses o levou. – Sim, um câncer, que não tinha nada com a história.

rachel-de-queiroz
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