Há homens do mar e homens do rio, homens da terra plana e homens da montanha, tão diversos uns dos outros como se fossem de raças diferentes. Nativa da praia e da catinga, confesso que, por mim, tenho medo de montanha. Tão altas, tão brutas, com suas rampas de pedra inacessíveis, e até a beleza dos vales lá embaixo é rodeada pela traição dos despenhadeiros.

Não é a cidade, nem as fábricas, nem nenhuma das formas do progresso mecânico que mais me demonstram o atrevimento do homem; é a montanha. Está um homenzinho cá embaixo, na planície, munido apenas das suas duas pernas, e lá em cima vê torrear os monstros, ásperos e verdes, vê os precipícios temerosos, vệ azular de encontro às nuvens os picos altíssimos. Pois se vai ele, abandonando a sua planura e a sua segurança, abrindo trilha no flanco do gigante, e escala as serras, e escolhe local de pouso e moradia, e desvenda os mistérios de entre os montes, e aceita como destino e meio de vida o eterno sobe e desce de ladeiras, e faz dos precipícios o seu cotidiano. E vive feliz, e atrai outros atrevidos para o seu lado ― e quando se vê está constituído todo um povo de montanheses ― fato, afinal, tão admirável quanto se de nossa espécie se constituísse de repente um povo de anfíbios...

Vê-se pois que foi exagero euclidiano dizer que o sertanejo é que é antes de tudo um forte. Qual, o sertanejo é principalmente um sofredor. É o fatalista, que recebe como lhe caem por cima as pragas e as poucas bênçãos do destino; enquanto o montanhês é o agressivo, o domador da fera. O sertanejo foi se chegando aos poucos ― cada dia, cada ano, caminhava mais uma légua, seguindo no rastro do boi; enquanto o candidato a montanhês teve necessariamente o seu momento de decisão, na hora em que se resolve a enfrentar o salto que o levará cá de baixo às altitudes da serra, e, através da trilha difícil que ele mesmo tem que construir, marcar o seu lugar numa riba de cordilheira, nele se empoleirar e de lá olhar o mundo como um vitorioso.

*

Isto não é um apólogo. Será quando muito um débil aviso de perigo. Durante anos e anos tivemos o domínio dos homens do planalto e não se deve confundir planalto com montanha; os do planalto só têm da montanha as vantagens, que é a altitude sem a aspereza de picos e morros. O planalto faz trabalhadores e aristocratas, não forja guerrilheiros. Depois subiram os do pampa, a planície por definição. Ficaram também muito tempo ― tanto tempo que tem sido difícil desalojá-los, e para os contentar ainda foi preciso entregar-lhes um bom quinhão dos despojos.

Mas apesar dessas concessões ao passado, indiscutivelmente são os da montanha os donos da ocasião. E note-se uma coisa curiosa: qual os associados do grupo? Serranos de diversas procedências ― de Minas, de Santa Catarina e do Estado do Rio ― que são os montanheses clássicos deste país. Fala-se mais em Minas como terra alterosa; mas quem conhece a Serra da Atafona, já não tem medo da Mantiqueira. E filhos da Itatiaia se acham quase uns himalaios, no meio da paisagem nacional.

*

J'y suis ― j'y reste...” É o que eles não dizem, mas pensam. Sim, vieram para ficar. Ninguém se engane. O Rio tem suficientes morros e altitudes para lhes dar uma ilusão de serra, e assim não se sentirem nostálgicos da montanha natal. E o poder, além disso, é mais embriagador que a vertigem das alturas.

A única esperança que nós temos são os nossos aliados, montanheses também. Sim, porque eles se dividem. Brigam muito, benza-os Deus. São ao mesmo tempo homens de clã e individualistas ardentes, e isso dá margem a uma perspectiva infinita de conflitos que poderemos aproveitar a nosso favor.

Do contrário, é botar o coração ao largo, voltar aos nossos açudinhos, aos nossos boizinhos, e nos conformarmos em ficar para sempre como colônia da Montanha...

P.S. para Céres: só agora recebo o seu lindo presente. Lindo e perfeito - verifiquei, peça por peça, não falta nada: jibão, guarda-peito, perneiras, chapéu, até chicote, chinela e esporas. Sem falar na sela e no cavalo. Muito obrigada!.

rachel-de-queiroz
x
- +