[21 mar 1953]

Perdão, mas ainda é a seca

Vocês me desculpem a falta de variedade, mas agora o assunto tem mesmo que ser a seca. 

Se de norte a sul não se fala outra coisa, se só dá seca, imaginem como de seca não estará cheio o coração de um cearense!

Primeiro que tudo, mais um agradecimento à fraterna solidariedade que se manifesta pelo Brasil inteiro, cada qual querendo mandar o seu auxilio para os irmãos nordestinos. Em boa hora chega esse auxílio: já são três anos de estiagem que nos maltratam, e chegou-se a um ponto em que não há mais resistência possível.

E cada remessa de dinheiro, cada caixa de leite que mandam, cada saco de farinha ou de arroz, cada arroba de carne seca quantas vidas de crianças, de jovens, de pais e mães de família, esses socorros irão salvar?

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É ruim morrer de fome, amigos. Já conversei com entendidos. Diz que o processo se desenrola aos poucos e pode durar muitos, muitos dias. No primeiro dia é a velha sensação de fome em primeiro grau que todos conhecemos mais ou menos; no segundo vem a fraqueza, no terceiro as vertigens, do quinto em diante são os delírios, em alguns casos a fúria. Ao fim da primeira semana (mesmo quem escapa não se lembra bem) — é um nevoeiro confuso, dentro do qual pesadelos e desmaios se alternam, miragens de fartura — até chegar a coma libertadora.

E morrem antes dos outros as criancinhas e os velhos, em seguida os adultos; assim, numa família que perece de fome (e lá já morreram muitas) aquele que for o mais forte, assistirá aos seus irem embora, de um em um.

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Sim, é horrível. Mormente quando se pensa em que as secas não são um flagelo repentino singular. Que as secas são, para o Nordeste, um fenômeno quase tão regular quanto as estações — apenas se repetem com intervalos de anos, e não com intervalos de meses. E que se diria de um povo que não se soubesse preparar anualmente para as dificuldades que lhe trazem os frios do inverno ou as águas da primavera?

Pois assim é a nossa imprevidência — nossa não, que somos como menores, tutelados pela União. Pois nada de definitivo se fez ainda no Brasil para anular o efeito do flagelo climático, no Polígono das Secas. Todo auxílio que se dá ao Nordeste, é intermitente, emocional e desregrado. Não é uma obra de consciência, sem solução de continuidade, que os presidentes da república deveriam receber, no começo do quatriênio, como atleta que recebe o facho olímpico com o dever de o passar adiante, terminada a sua etapa de corrida. Os ex-presidentes da república que ainda são vivos, será possível que não os maltrate o remorso, vendo a tragédia monotonamente se repetir, decênio após decênio — e muito por culpa deles? O sr. Artur Bernardes, por exemplo — será que não lhe dói a consciência, por mais estreita que seja, ao pensar que foi ele, sozinho, o responsável pelo abandono da obra de Epitácio Pessoa? Ele que suspendeu as obras do Nordeste, por estreiteza mental, por falta de visão de estadista, por coração duro de homem municipal, que só pensa nos seus e nos do seu quarteirão? Ainda hoje, como monumento negativo a Bernardes, lá estão as obras abandonadas de Orós, os maquinismos comidos de ferrugem, a lista das verbas ali enterradas à toa.

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Agora mesmo está havendo este clamor, este interesse pelos nordestinos, quase esta paixão. Mas deixa chover um pouco — como dizem que já vai chovendo — deixa aquela pobre gente se embalar de novo na esperança de colheita, deixa que os famintos parem de clamar e imediatamente voltará tudo ao abandono e ao esquecimento. As grandes obras anunciadas ficarão nos seus princípios. As verbas votadas se desviarão para outros fins. Os técnicos serão demitidos, a tragédia esquecida. Até que chegue nova seca, e mais gente comece a morrer à mingua, e a opinião se emocione e esporeie a autoridade a tomar atitude. Assim tem sido desde o tempo dos donatários e assim será — por este tempo de donatários, que ainda vai continuando...

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E não acreditem que a terra de lá é ruim, inútil, que o melhor a fazer com o Nordeste será despovoá-lo. Mais seca do que o Nordeste é a Palestina, e para lá Deus encaminhou o seu povo eleito, lá fez nascer o Cristo seu Filho. Por amor daquela terra mais seca do que a nossa, os homens vêm morrendo e matando há milhares de anos. E não se esqueçam, principalmente, de que ali mesmo, naquele Ceará oriental, é que estava localizada Canaã, a terra de onde mana o leite e o mel. A mesma Canaã a que os judeus de Israel, retornando de um exílio de dois mil anos, devolvem a antiga fecundidade, fazendo lá o que deveríamos fazer aqui se não fôssemos um povo e um governo de imprevidentes e suicidas: irrigando, fechando barragens, buscando a água no fundo da terra, misturando essa água com a terra, para as transformar em riqueza.

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Vocês já pensaram uma coisa? Se o Nordeste fosse a Holanda, e a nossa sobrevivência dependesse de diques, os quais por sua vez dependessem do governo para a sua conservação? Com esta inspirada política que nos governa, há quanto tempo, em vez de simplesmente passarmos pela desgraça de uma seca periódica — já estaríamos sossegados, tranquilos, dormindo bem afogadinhos, no fundo do mar?...

rachel-de-queiroz
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