Não, Deus me livre de considerações sobre a Grécia. Mais de dois mil anos de considerações já chegam, e, afinal, como dizia o outro ― Who am I?

Mas ganhei na semana passada um álbum com figuras da Grécia; figuras não, retratos; fotografias modernas, tiradas daquelas ruínas de milênios, vida e beleza passada ― postas no preto e branco por artes das invenções de hoje, trazidas ao alcance dos olhos dos bárbaros que jamais se deleitaram pelas encostas e promontórios da Hélade.

Ruínas. Pedras, lombadas, colunas partidas, templos desmoronados. Roubadas as estátuas dos deuses que hoje povoam os museus com a sua presença imortal. Cá está Samontrácia e o seu bosque de plátanos onde se encontrou a Vitória Alada, aquela Nikê acéfala, de espantosa beleza, que deixa opresso o coração dos homens. Cá está o amontoado clássico de Atenas, a acrópole e o Aerópago, os propileus e o Erecteion, com as suas cariátides, e o Partenon e o teatro de Dionísio. Nomes que soam como música, que nós ouvimos e lemos desde que aprendemos a ler e a prestar atenção às coisas de inteligência e arte; nomes que trazemos tão dentro do pensamento e da memória como se fossem de pátria nossa, de lembrança nossa. E que de certo modo o são, pois apesar de todo o ridículo de que se tem coberto essa ideia, não é menos verdade que todos trazemos dentro de nós o nosso grão de helenos.

E olhando para essas paisagens de uma dignidade fria e imortal como a sua própria beleza; e vendo entremeados com ela aspectos da Grécia de hoje, humilde, paupérrima, salvando-se através do pitoresco como quaisquer outros povoados levantinos, ― me lembro de como deve ser triste e sobrecarregada de terríveis memórias a sorte do pobre grego moderno, o descendente dos helenos que habita os vales e as montanhas ilustres: há uma expressão atual para isso: é o complexo de inferioridade. Sim, que espantoso complexo de inferioridade deve roer o grego moderno, vivendo a sua vida mesquinha e cotidiana a meio do esplendor do seu passado clássico. Se cava um canteiro na sua horta ― quem sabe estará plantando couves sobre o rastro de Péricles? Se põe seu barco a navegar e atira o anzol com a isca no mar azul da Jônia, meu Deus, talvez esteja navegando sobre esqueletos dos navios de Ulisses, e o próprio mar não é o mar oceano comum a todos ― aquele é thálassa; thálassa, pertence não a ele ou a nós ― mas a Homero. E a língua, a própria língua que ele fala, não é senhor dela, não a pode distorcer com gíria, sente-se envergonhado pelas deformações que os seus antepassados incultos trouxeram ao idioma dos deuses, e compreende que os sábios não lhe perdoarão nunca o sacrilégio de ter feito crescer, alterar-se, evoluir em língua viva o monumento verbal que é um patrimônio da humanidade inteira. É quase como se o acusassem, a ele, pobre pastor levantino, de haver violado e imposto sua prole mesquinha à Atena Partenos, a deusa-virgem.

Deve viver como estrangeiro na terra que é sua há milênios; oficio que lhe convenha, há apenas o de guardião do passado. Descendente bastardo de heróis e de semideuses, nem ousa pretender perante o mundo o direito legítimo à sua herança ilustre. Prefere mesmo deixar-se passar por invasor, por usurpador, irmão de turcos e outros bárbaros. Sofre miséria e esquecimento, vive aquela sórdida vida de entre Ásia e África, entre a oliveira, a cabra e cepa. E parece que a fim de se libertar do fardo terrível daquele passado olímpico, apelou para o remédio mais simples: ignora-o.

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