Acaba de sair em edição da campanha de Educação de Adultos, um livro autobiográfico — livro belo e doloroso — da autoria de Raymundo Sousa Dantas, e cujo título é este: Um começo de vida.

Publicando-o e distribuindo-o gratuitamente, num gesto altamente elogiável, (tão diverso da publicação e distribuição daquelas “biografias” do ditador, durante o nosso interregno fascista) o Ministério da Educação recomenda “a leitura de Um começo de vida nas classes de ensino supletivo de todo o país, e também desalentados e descrentes da ideia de que cada homem possa construir o seu próprio destino, pois que assim é, em grande parte pelo menos”. (Palavras do ministro Clemente Mariani, no prefácio). Sim, pode ser que alguém consiga tirar dessa dramática história uma lição de otimismo. Afinal, revendo em linhas gerais, verificamos que o rapaz era paupérrimo, analfabeto, de cor, nativo de uma pequena cidade, no interior de Sergipe. E à força de luta, num esforço sobre-humano, conseguiu não só alfabetizar-se como adquirir instrução geral, aprender línguas, familiarizar-se com as grandes obras da literatura mundial e tornar-se ele próprio um escritor, conquistando um lugar ao sol, lugar que este seu pequeno livro transforma num lugar seguro e importante, dentro da literatura nacional. Dá ele assim uma lição de coragem, de obstinação, de autossacrifício por amor desse aprendizado que o moço sergipano transformara em ideal.

Contudo, o que mais me impressionou nesse livro não é a sua significação óbvia; é, ao contrário, o terrível depoimento que ele representa, a narrativa do dramático destino do homem, da sua irremediável solidão, da injustiça da sorte de cada um, de como nos são fechados quase todos os caminhos, e que infinidade de sacrifícios e despojamentos somos obrigados a aceitar, se teimamos em trilhar esses caminhos. E, pois, não poderei afirmar daqui se a dura lição apresentada por Raymundo Sousa Dantas anima ou desanima, se o seu caso pode ser indicado como um exemplo a seguir. Será que se pode afirmar que ele foi avante porque lutou — ou foi avante, apesar da luta quase impossível, porque se tratava dum caso excepcional? Pode-se, licitamente, pedir a qualquer criatura, os prodígios de heroísmo que Sousa Dantas operou para chegar a ser — o que, ele mesmo não sabia direito, e talvez não desejasse ser propriamente nada. O que ele desejava era saber, era ler, era se apossar desses tesouros impressos e neles poder se afundar. Nem se pode recomendar a nenhum jovem aquela alucinada concentração em si mesmo, que afastou Sousa Dantas de qualquer outra solicitação que não fosse a do seu espírito, mais faminto que o pobre corpo.

Não acredito que homem nenhum, levado pelo simples desejo de subir na vida, de arranjar um bom emprego, de adquirir conhecimentos úteis, se submeta ao calvário de amarguras, de humilhações e dificuldades, que semearam a atormentada juventude de Raymundo Sousa Dantas. Ele as venceu porque era diferente. Porque recebia um impulso interior que não era a simples ambição, a simples emulação social. Tinha um vulcão querendo rebentar dentro de si, procurando expressão — e se o rapaz não se houvesse alfabetizado, ou se se houvesse embrutecido pelo sofrimento e pela miséria — o seu vulcão explodiria de qualquer maneira. E se não conseguisse chegar a ser um escritor, como o conseguiu, não deixaria de modo nenhum de ser um artista, um criador. E isso é ele próprio que o afirma ao narrar as suas tentativas de criação oral, quando ainda analfabeto, e a sua obstinação em escrever, quando ainda mal sabia reunir as letras em palavras.

Mas de qualquer modo, seja qual for a lição que dele se extraia, esse pequeno volume de lembranças é uma obra de arte, comovedora e preciosa, marcada com o sangue e com as lágrimas de um homem.

rachel-de-queiroz
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