Foi nesta mesma semana que os jornais publicaram telegramas descrevendo por miúdos a caçada empreendida por duzentos brancos contra dois pobres negros fugitivos pelos campos das margens do Mississipi, contando que Ku Klux Klan, numa reunião monstro, desafiara o governo e prometera renovado ardor na campanha antinegra; e por fim um horrendo despacho originário de Washington, contando que o diretor de um dos maiores nosocômios da capital americana, o Hospital Gallinger, interditou todas as transfusões de sangue em que se empregassem as reservas de sangue da Cruz Vermelha Americana, alegando que essas reservas eram “impuras” pois continham algum sangue de negro. Explica o tal diretor, o vice-almirante Rossiter, que pelo nome não se perca, que os americanos “perderiam a pureza (sic) da raça caso lhes fosse injetado esse sangue misturado nas veias”.

Diante dessas melancólicas provas de ferocidade e debilidade mental (e como se associam com freqüência ambas as moléstias!) era com tristeza e medo que a gente previa o futuro não só dos Estados Unidos da América, como também de nós todos, cujo futuro tão estreitamente depende do futuro dos ianques.

E eis que de súbito nos aparece novo telegrama, igualmente de Washington, a contar que o pequeno Truman resolveu enfrentar o dragão da Ku Klux Klan, e assinou um decreto eliminando a discriminação racial na administracão e nas forças armadas dos Estados Unidos.

Anima uma notícia dessas. No meio do pavor da guerra, do caos político e da miséria econômica, anima. E Truman, quem diria. Jamais simpatizei com o sorridente Harry; sempre me pareceu a encarnação de Babbitt guindado ao poder, e devo confessar que o meu ideal humano não é propriamente Babbitt, antes o seu antípoda. Creio mesmo que em escrito de algum tempo atrás cheguei a comparar Mister Truman a um Pequeno Polegar que tentasse enfiar os pés nas botas de sete léguas de Roosevelt. Mas agora vejo que, tal como no conto de fadas, as botas mágicas se adaptaram aos pés miúdos do homenzinho e lhe permitiram dar um passo imenso no caminho da igualdade entre os homens — passo tão grande que a ele nem se atreveu o próprio Roosevelt, conhecido entretanto como o “campeão da igualdade racial” nos Estados Unidos.

Gostemos ou não gostemos de Truman, apoiemos ou não apoiemos a sua política internacional, aleguem-se como se alegarão escusos motivos de aritmética eleitoral para o seu gesto ⏤ a verdade é que o gesto foi feito e que o gesto foi grande.

Talvez seja esse decreto o canto do cisne do governo Truman. Foi com forças muito poderosas que ele se atreveu a lutar. Segundo diz em entrevista um antigo colaborador de Roosevelt, “a decisão de Truman foi uma das mais corajosas da história; prova bem que ele, em última análise, não é joguete de Wall Street nem dos chefes do exército, tradicionalmente racistas”.

A verdade conhecida por todos é que Roosevelt, tendo a apoiá-lo um partido democrático muito mais forte e dispondo de poderes quase ditatoriais durante a guerra não se atreveu a ordenar tal medida, temeroso de desencadear a cólera dos escravagistas sulinos e dos racistas reacionários do país inteiro. Contudo, bem se deveria aperceber de quanto lhe valeria uma politica racial interna decente, não só como desafio à bestialidade “ariana” dos nazistas, como para cimentar a tão necessária ajuda e aliança dos povos mixed-race da América Latina.

Talvez a Truman esteja reservado um crepúsculo rápido e melancólico como o da nossa princesa Isabel, após o 13 de maio. Mas afinal é com certa espécie de fracassos pessoais que os homens tomam lugar na história. E o pequeno homem Truman, que tão mal adequado parecia ao posto de líder da maior nação do mundo, afinal terá o seu nome entre os dos grandes presidentes da América, em vez de deixá-lo apenas como simples assinatura sem importância firmando os papéis da Casa Branca.

rachel-de-queiroz
As crônicas aqui reproduzidas podem veicular representações negativas e estereótipos da época em que foram escritas. Acreditamos, no entanto, na importância de publicá-las: por retratarem o comportamento e os costumes de outro tempo, contribuem para o relevante debate em torno de inclusão social e diversidade.
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