Senhor presidente da república:

Os jornais de ontem publicaram um telegrama contando que o comércio da cidade de Quixadá foi assaltado pelos sertanejos famintos. Essa é a minha cidade, e a ela me prendem laços de saudade e amor, semelhantes aos que prendem vossa excelência à sua bela Diamantina. E na hora em que leio o telegrama, recebo carta de minha gente, uma pessoa da família, dona de fazenda, cujas singelas palavras transcrevo aqui, mais eloquentes do que qualquer literatura.

A situação está péssima, não sei como este povo ainda vive. A água está precaríssima, os cacimbões de tal modo baixos, que para se carregar alguma água, é preciso esperar horas e horas numa fila. O açude está completamente seco. O serviço do governo ainda existe; mas continua a pagar aos homens 40 cruzeiros por dia, embora os gêneros estejam caríssimos. Agora está muito pior do que no começo da seca, o povo cansado e fraco, sem coragem. Imagine que o feijão está a 35 cruzeiros o quilo, a farinha a 19, a rapadura a 15, o açúcar a 26, o café (cru) a 60. O pior é que eles não pagam mais um tostão a dinheiro, nem com desconto, e ainda estão fazendo confusão nas cadernetas de pagamento. Calcule que os filhos de X... estão trabalhando os três; depois de nove dias fazendo economia de apertar a barriga, como eles disseram, quando fizeram contas, o saldo só deu para trazer três kg de farinha, um de açúcar, um de feijão. Veja que miséria! Eles, coitados, vieram para pedir que eu lhe escrevesse, contando essas coisas, para ver se o roubo diminui mais, aqui em Quixadá. Coitados, estão se revoltando. Ainda ontem morreu um no caminho de lá para cá, de tanto passar mal para trazer alguma coisa para casa”.

Senhor presidente, eu já havia desanimado de pedir justiça, mas estas desgraças dos meus me cortaram demais o coração.

Não venho falar a vossa excelência como jornalista de oposição, que continuo sendo  — lhe falo de criatura para criatura, venho gritar por socorro, porque essa gente ainda tem vários meses de sofrimentos diante de si, mesmo que 1959 seja um ano de inverno. Sim, mesmo que chova, o que ainda está indeciso, só para abril e maio é que se irá apanhar a primeira colheita de milho e feijão.

Senhor presidente, vossa excelência é um homem ambicioso, e está fazendo enormes esforços para que o seu nome fique na história do Brasil não apenas como o simples ocupante de um quinquênio, mas como construtor e criador de civilização. Mas que lhe adiantará construir os belíssimos palácios de Brasília, que lhe adiantarão as fábricas de automóveis e as centrais elétricas de Minas ou do Rio Grande e S. Paulo, se neste mesmo quinquênio que v. excelência sonha ver assinalado com pedra branca,  — alguns milhões de brasileiros literalmente morreram de fome?

Vossa excelência dirá que não é culpa sua. Mas é. A parte do governo não acaba na remessa ou ordem de remessa das verbas para auxílio aos flagelados; precisa chegar até à distribuição honrada dessas verbas àqueles a quem se destinam. Faz um ano que gritamos aos ouvidos do governo esta verdade tão simples: o Nordeste não está sendo devidamente socorrido. Mas v. excelência não ouve, ninguém ouve. Quer ver como realmente se passam as coisas?

Vai a ordem daqui do Rio. Os chefes políticos iniciam então o recrutamento para os trabalhos de uma estrada, um açude (obra quase sempre de emergência e improvisada). Como chegou a ordem, mas não a verba, o chefe político trata com negociantes seus protegidos (quando não é ele próprio o negociante) o fornecimento — fiado — de gêneros aos trabalhadores alistados. O fornecedor entrega semanalmente a cada pai de família que conseguiu “caderneta de alistamento” o seu salário em gêneros — feijão, farinha, rapadura, açúcar. Mas havendo demora na entrega das verbas, os fornecedores alegam que o seu pequeno capital e o seu pequeno crédito se esgotaram e suspendem tudo — fornecimento e trabalho. E quando a verba chega, mal dá para pagar o fiado velho — mormente porque chega muito magra, muito diminuída de passar por tantas mãos. De forma que nem mesmo serviço regular existe, sempre precário, e incerto.

Um dos aspectos mais revoltantes dessa cadeia de vergonhas é que tudo é organizado, arbitrado, dirigido, pelos próprios interessados na exploração. Não há fiscalização, não há controle — tudo é feito “em confiança”. Desde o alistamento, dependente dos chefes políticos, até ao arbitramento dos preços, que é feito pelos fornecedores. Ninguém controla a marcha do dinheiro, desde que ele sai do Banco do Brasil, até que se esconde no bolso dos intermediários. Ou se se faz algum controle, esse controle é fictício. O desgraçado povo a quem o dinheiro se destina jamais vê tostão  — apenas recebe em troca de um dia de trabalho o valor de 40 cruzeiros  — em feijão e farinha  — ao preço que o próprio desalmado fornecedor estabeleceu. E quando precisa urgentemente de um vintém para um remédio, para um gênero essencial que o fornecedor não tem  — o homem talvez lhe “adiante” o dinheiro  — mas com o desconto mínimo de 20%.

Senhor presidente, dizem que o senhor não leu o relatório do cel. Ramagem, e vários outros relatórios onde essas misérias são honradamente descritas. Talvez porque os relatórios fossem longos e o tempo de v. excelência é pouco. Mas lhe peço pelo amor de Deus que leia esta crônica,  — não lhe custará nem dez minutos  — e acredite no que estou contando. E dê um jeito. Eu juro a v. excelência, por alma de todos os meus amados defuntos enterrados na nossa pobre terra, que não há uma mentira, nem sequer um pequeno exagero nas palavras que lhe digo ou lhe repito. Pelo contrário, digo muito menos do que há.

Vossa excelência conta sempre que em menino e rapaz conheceu a pobreza  — sim, senhor presidente, mas não conheceu a fome, que é coisa muito diversa. Não apelo portanto a v. exª. como governante  — a coisa já saiu desse terreno e eu sei o que são injunções políticas  — apelo a vossa excelência como cristão. Pois já não são medidas de governo, sábias e de longo alcance o que estamos pleiteando, já não é combate à seca — o que estamos pedindo é caridade. Não deixe mais roubarem como estão roubando as verbas que são mandadas para acudir os flagelados. O povo já duvida das afirmações de v. excelência ao dizer que liberou tantos milhões e mais tantos milhões  — pois os seus prepostos, para encobrirem as misérias que praticam, insinuam que as verbas não chegam lá, que as ordens de pagamento ficam apenas no papel.

E isso não deve ser verdade, excelência, não pode ser verdade. O presidente da república não iria ludibriar assim esses milhões de desgraçados, que embora fracos e desanimados já vão perdendo a paciência, já assaltam, já tomam à força, já se reúnem para uma ação comum. A fome é má conselheira, senhor presidente. E o desespero é conselheiro ainda pior.

rachel-de-queiroz
As crônicas aqui reproduzidas podem veicular representações negativas e estereótipos da época em que foram escritas. Acreditamos, no entanto, na importância de publicá-las: por retratarem o comportamento e os costumes de outro tempo, contribuem para o relevante debate em torno de inclusão social e diversidade.
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