No Rio, em mês de Santo Antônio e São João, já não temos fogueiras, nem compadres, nem sortes de casamentos, nem nada mais das velhas e doces coisas do junho provinciano. Em mês de São João, o Rio, como praça de guerra que o é, dá salvas. De sete, de 21, e até de mil e um tiros, que é mais bonito. O Governo proíbe, a polícia ameaça, todo mundo se queixa, mas chega o fatídico mês de junho, e esta grande cidade, da Barra da Tijuca a Vigário Geral, se transforma num campo de bombardeio.

Bem, a gente tem que dar o desconto da mocidade. Os atiradores de bombas são meninos e rapazes: jovens gostam de fazer ruído – há qualquer coisa de extremamente sedutor no estouro de uma bomba, para um coração adolescente. O diabo saberá o porquê de tal sedução, pois, evidentemente, é de inspiração diabólica essa paixão por tiros. Mas não há negá-la.

Não se pode, entretanto, desculpar o bombardeio alegando essa mesma paixão juvenil pela pólvora detonada; paixões temos nós várias, e a polícia em geral não permite que as satisfaçamos. Justamente uma das funções precípuas da polícia é botar ordem nesse negócio de expansão de paixões dos munícipes, impedindo-as de se manifestar sempre que elas se choquem com o bem comum. Portanto, pode ser gostoso, excitante, emocionante, estimulante, soltar foguetes e bombas – mas é terrível sofrê-los.

Contudo, o pior ainda não é o barulho. O pior são os acidentes. Todos os anos há crianças mutiladas – de rostos queimados, de dedos arrancados – até cegas, coitadinhas. Tudo culpa dos fogos de São João. Creio que, depois dos lotações, os fogos juninos são a mais mortífera instituição do Rio de Janeiro e, depois do jogo do bicho, a de mais difícil exterminação. Todos os anos a imprensa grita. Deputados e vereadores clamam, nas suas Câmaras respectivas. O Sr. Chefe de Polícia baixa portarias, o prefeito proíbe a venda de fogos. Mas as barraquinhas de fogos brotam do chão como cogumelos incendiários, não há lei nem polícia que as detenha. O vizinho e próspero município de Caxias, não sei se com a intenção de fazer camouflage da outra espécie de fogos a que se dedica, não sei se por simples amor ao gênero, é o quartel-general dos fogueteiros. Lá, à margem da estrada, as barracas de fogos são mais abundantes do que carrocinha de pipoca em porta de circo. De forma que, se qualquer dificuldade surge aqui no Rio para a aquisição das bombinhas, é só atravessar a fronteira e entrar no país vizinho, quero dizer o estado vizinho, e compra-se até TNT, dizem.

E este ano, mais que nos outros, a foguetaria parece que nos ataca os nervos. A verdade é que todos andamos sobressaltados. Ninguém sabe direito como é que acabará o dia hoje, e sob que signo, sob que leis e sob que chefia se iniciará o dia de amanhã. E é num ambiente desses que não cessa o pipocar dos tiros. Sei que não são tiros de verdade. Dizem que o ouvido treinado distingue perfeitamente o fogo da metralha do simples fogo de festim. Mas isso são sutilezas de técnicos. E a grande maioria dos cidadãos desta pátria – feliz ou infelizmente – é leiga nas artes da guerra. Não temos ouvido suficientemente afinado para distinguir nuanças explosivas e, para nós, um estouro de cabeça-de-negro é irmão gêmeo de um estrondo bélico. O tiro espoca, a gente dá um pulo, fica de coração na mão, sem saber se é algum Tamandaré saindo barra afora, se um jato partindo para destino ignorado, se é tanque fazendo exercício na Quinta da Boa Vista. É de morte.

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Senhoras autoridades responsáveis pelas nossas inúmeras chefias de segurança, tenham dó. Já chegavam aqueles tiros de verdade que nos alarmaram em certas madrugadas ominosas. Não permitam, vossas excelências, que nos liquidem os restos de coragem e saúde com este sádico bombardeio que sacode a cidade dia e noite, que nos arranca da cama, nos levanta da mesa de trabalho, sempre sob esta angustiosa e secreta interrogação: Será que a coisa já começou?

Vossas excelências asseguram que não vai começar coisa nenhuma, benza Deus. Pois então providenciem para que nos deixem em sossego. Como é que diz o outro? Em casa de enforcado não se fala em corda. Pois é. Vossas excelências não acham que esses tiroteios são, no mínimo, de muito mau gosto?

Ainda ontem eu ia passando a pé pela rua do Catete, quando uma turma de garotos pôs uma lata, com uma bomba dentro, bem no trilho do bonde. O estouro foi espantoso. Uma velha quis dar um chilique, um cavalheiro, preocupado, comentava: “Capaz de assustar o presidente”! Mas um bem informado sossegou – o presidente àquelas horas andava voando por longe.

 

Mas nós, ai de nós, ilustríssimos senhores, nós não voamos. Rampamos pela cidade, de lotação, de pé e de bonde, quando há bondes. Só anjos e presidentes voam, sempre que lhes dá vontade nas asas. Nós, nós nos arrastamos no pó do asfalto e na lama dos subúrbios. E para nós, presos à terra, degredados neste vale de lágrimas, que não podemos aspirar à liberdade do céu – nós suplicamos que nos poupem aos tiros. Covardes sei que nos podem chamar. Mas esta guerra de nervos não tem carioca, nem gaúcho, nem cearense, nem baiano, nem mesmo mineiro que aguente.

rachel-de-queiroz
As crônicas aqui reproduzidas podem veicular representações negativas e estereótipos da época em que foram escritas. Acreditamos, no entanto, na importância de publicá-las: por retratarem o comportamento e os costumes de outro tempo, contribuem para o relevante debate em torno de inclusão social e diversidade.
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