Por que mistério, sendo a Praia do Flamengo a residência mais "bem" do Rio, não pelo banho do Flamengo igualmente bem?

Verdade, verdade, que se trata de uma nesga de areia nem sempre muito limpa e sempre terrivelmente superlotada. E enquanto praia não cobrar aluguel, a frequência do banho no Flamengo será sempre essa mistura tão brasileira de cor, raça, condição social e até confissão religiosa, que vai desde a epiderme retinta do crioulo atlético de profissão ignorada, até as flácidas carnes cor de leite da madame proprietária da pensão familiar das transversais à rua do Catete.

Cedo começa o movimento do Flamengo. Mal desponta o sol, vão chegando os banhistas de idade provecta, aqueles que ainda são do tempo em que banho de mar se tomava como remédio e, para ter virtude, deveria ser praticado às primeiras claridades da manhã. São cavalheiros enrugados, alguns até com maiôs de malha negra, inteiriços, de alça. As senhoras usam em geral roupas de banho feitas em casa que, se não chegam à decorosidade perfeita dos "costumes de banho" do começo do século, estão a léguas das audácias impudicas das matronas que se exibem na Zona Sul. Mal descobrem o joelho, têm sempre um saiote, sobem num decote redondo. E as banhistas no trajeto de casa à praia envolvem-se num quimono discreto, ou enfiam uma saia desbotada; calçam chinelos gastos de chagrin, ou simples tamancos. Pés descalços, nunca. Mas não se infira dessa simplicidade, dessas roupas fanadas, um sinal de pobreza ou de baixo nível social dos seus portadores. É que no tempo deles ainda era considerada extravagância censurável luxar em banho de mar, estragar fazenda boa com sol e água salgada. Os maiôs de cetim, as saídas de praialuxuosas, são suntuosidades recentes.

Depois que passa a onda dos banhistas higiênicos, começa a vez das babás e das mamães com seus garotos. E a hora mais tumultuosa da praia. Choro de criança, palmadas, ralhos, papel de Kibon pelo chão, o permanente tumulto da infância.

Junto com os infantes, ou pouco depois deles, aparece então a rapaziada e a moçada das pensões das ruas Correia Dutra, Ferreira Viana, Buarque de Macedo e mais vizinhas. Também esses não gastam luxos. Poucos têm para exibir algum belo short, lustroso, desfilar no Arpoador. O pessoal das nove horas pôs o seu luxo nos músculos reais ou imaginados, na força da braçada, no bronzeado da pele. O calção é sempre o velho tricô de toda a vida, desbotado, muito justo, que já viu vários verões naquele corpo ou no corpo de um antecessor já doutorado, já devolvido à província.

Esses se misturam com os banhistas do meio-dia e da tarde, que são a nota dos frequentadores. Exibem-se nessa hora os brotos mais sensacionais das adjacências. E, por amor de tais brotos, muito gostosão cujo habitat é Copacabana, arrisca o seu olho por estas bandas. E a hora das barracas, dos peixes, jacarés e cavalinhos de borracha, pois as venerandas sereias do romper da aurora se contentam com uma câmara de ar a servir de cavalete e salva-vidas. Surge o óleo de bronzear passando amorosamente nas espáduas esbeltas. Algunsmedicine ball. Inúmeras petecas. Registram-se caldos, gritinhos, corridas de ponta de pé na areia atravancada, aulas de natação e demais divertimentos.

Mas todos esses horários são permeados pela troupe adejante das domésticas vênus de ébano, bonecas de piche celestiais mulatadas, portuguesinhas de pernas grossas. Não têm elas hora certa, porque incerta é a hora da folga. Os banhos maiores surgem à tarde, no período dito da sesta, quando já se lavou a louça do almoço, a patroa saiu para o cinema e ainda não se pôs o jantar no fogo. E com elas (trajadas em audazes biquínis de cetim turquesa ou carmesim, pois é para o maiô cara e a rica fantasia de baiana que elas se escravizam o ano inteiro na cozinha dos outros), com elas vêm, também ao capricho das folgas, os seus galãs naturais entregadores, caixeiros, ajudantes de feirantes, biscateiros, garçons de botequim, praças de várias corporações, simples bonitões sem emprego fixo e, mais raro, um príncipe entre os homens, quero dizer, um motorista, ou, como vulgarmente se fala, um chofer.

A toda essa gente, a água da enseada, tranquila e discreta (porque não muito limpa), recebe, embala e diverte. E com a água colaboram o céu claro, a vista enternecedora de uma vela de iate dobrando o Pão de Açúcar, um risco branco da gaivota cortando o ar, o calor, as cócegas da areia e dos seus bichinhos por sob os ombros dos banhistas, estirados ao sol.

E tudo de graça. Sim, tudo completamente de graça nem acredita benza Deus.

rachel-de-queiroz
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