Sim, como dizia o nosso saudoso Monteiro Lobato traduzindo Kipling: chegou o tempo das falas novas. Os cantos mudaram, mudaram as músicas, mudaram os cantores. Parece incrível de acreditar, mas é verdade. Para uns será mal, para outros será bem, para todos novidade, mas tudo vai mudar, está mudando, sim senhor. Tinha-se a impressão, até mesmo nós os do contra, até mesmo nós que chorávamos por isso — tinha-se a impressão de que o país aqui era uma feitoria e de que eles eram os donos, donatários. Parecia tão inamovível a senhoria deles. Tratavam de tudo com tanta segurança e ao mesmo tempo com tanta ligeireza. Como quem lidasse com gaiola de passarinho. Nós vivíamos como alienígenas inamistosos na nossa própria terra — contemplávamos de tão longe os palácios, os aviões, os automóveis e os seus batedores, os banquetes — tudo tão contrário, tão distante e esquisito. Eles eram uma casta privilegiada, sucediam-se uns aos outros como pares de contradança — mudavam de dama e de valsa, mas eram sempre os mesmos, no salão. Nem a morte os desalojava, pois, mal fechavam os olhos, viravam placa de rua, busto de bronze nas praças. Não nego que tivessem as suas virtudes — mas ah, as suas desvirtudes, entre as quais a aparentemente inabalável perenidade!
Agora, porém, chegou mesmo o tempo das falas novas. Outros discursos se escutam que não aqueles, outras vozes, outras pessoas. Homens que todos sabíamos excelentes, capacidades que ninguém aproveitava, talentos que se menosprezavam, dedicações que se ignoravam — esses terão a sua vez. Mudou. Mudou tudo, de alto a baixo. E a mudança será irreversível, tão irreversível como aquela outra que levou a capital para Brasília. E quanto mais cedo se convencerem disso os que perderam, melhor para eles. Pois não estavam no poder graças a nenhum título — senão à posse de fato da máquina administrativa.
Eles eram como o motorista dentro de um carro — ao qual os pedestres não podem alcançar, com receio de serem atropelados. Mas aproveitou-se a mudança de sinal em lugar estratégico — fez-se descer do carro o chofer intruso e sem documentos. Agora o motorista é outro e seu antecessor é um pedestre igual a nós.
Não falo tanto pelo presidente. Agora que ele vai embora, não se podem negar as virtudes que inegavelmente são suas: capacidade de trabalho, entusiasmo, coragem, peito, e aquela irresistível, aquela arrasadora cordialidade. E também um senso inato de estadista, um zelo louvável pelo seu futuro nome na história, que o impediu de se atrelar ignominiosamente, como o queriam os seus amigos, à lamentável campanha do perdedor. Não, o que nós enterramos sem choro nem vela é o sistema, o sistema que se estabelecera contra, sobre, e em vez do regime. O abuso como lei, a camarilha como autoridade, o cambalacho como princípio, a desídia como rotina. Um presidente da república, um governador de estado, chegava ao poder tão atado de compromissos, tão envolvido em arranjos, tão estampilhado em protocolos que o seu maior problema era, no governo, conseguir governar. Antigamente a coisa ainda se fazia em segredo, num certo pudor ou respeito, pelo menos formal, às instituições. Mas depois o processo foi-se despojando de qualquer decoro, os cambalachos se tornaram de tal modo públicos que chegaram a afetar até mesmo a forma de governo; até se chegar à anomalia inconcebível deste último quinquênio, em que o presidente, para poder usar a sua faixa, teve que a repartir com um “sócio”, um condômino.
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É isso que esperamos, temos a certeza, vai mudar. A gente ler de manhã nos jornais uma nomeação e não ficar conjecturando para quem é, a quem vai servir, quem a extorquiu, a quem vai neutralizar. A gente ver os homens realmente melhores nos cargos de importância —e não um dentista na presidência do banco de Estado, um “jurista” de obscuras letras no Supremo, um contrabandista num consulado, um analfabeto numa cátedra, um compadre, um primo, um contraparente, na direção das grandes autarquias sem outro título para o lugar senão esse mesmo de compadre, de primo, de contraparente.
Meu Deus, parece um sonho. A gente voltar a ter esperança. A acreditar em alguma coisa. A gente, a quem o governo nada tem a dar em posições nem em vantagens pessoais que do governo nada quer senão que governe, que exerça o mandato do povo na sua plenitude, e governe, com largueza, com dignidade, com honradez e com inteligência.