O tempo é engraçado: enquanto o ano vai passando, é lento, lerdo, sofrido, mas vem o mês de dezembro e a gente olha para trás, dá a impressão é de que foi pouco mais que um minuto no relógio.

Chegam os primeiros cartões de Boas Festas – e parece que chegou a hora do ajuste de contas. Porque a presteza afetuosa dos amigos faz pensar logo nas omissões e nas faltas em que caímos, – tudo que a amizade devia e não fez, todas as dívidas do bem-querer, os parabéns omitidos, as cartas sem respostas, os telefonemas não dados, os convites não atendidos, ah, tanta coisa – e agora se atropelam, em cobrança, junto com as primeiras mensagens de Natal.

Contudo, se as mensagens vem aparecendo – e justamente assinadas por pessoas a quem se está em dívida de cortesia – é sinal de que houve perdão. Não é costume, nas terras onde há reis, que se celebre o nascimento de um novo príncipe com uma anistia geral? Então, claro, no dia do nascimento deste príncipe maior que todos, natural que os corações generosos ponham de lado os agravos, e magnanimamente os perdoem; que os sinos de Natal são toques de alegria, não dobres a sugerir arrependimentos e bater de peito.

E pois, de coração mais leve, a amigos e inimigos venho desejar muitas felicidades neste Natal. Aliás, pensando bem, aos inimigos não. Porque inimigos pessoais não os tenho, ou pelo menos me embalo na ilusão de os não ter. Posso ir para o inferno por muita coisa, mas por fazer deliberadamente mal a alguém, isso não vou. Se o fiz, foi sem saber, e quem não sabe não peca. Não gosto de alguns sujeitos, mas a ponto de os chamar inimigos não chego. Apenas são chatos ou malandros – e ora, não sou palmatória dos outros, deixa essa gente pra lá. Não sei qual foi o grande do Mundo que, ao morrer, disse que não tivera outros inimigos senão os inimigos da sua pátria; eu, modéstia à parte, posso repetir que outros inimigos não tenho, que os reconheça como tais, senão esses mesmos. A eles, pois, como perdoar e desejar felicidade? O agravo que fizeram não foi a mim, a mim não cabe o perdão. Pelo contrário, o que lhes desejo são os remorsos e o ranger de dentes. Que não tenham sossego nem alegria enquanto não se arrependerem e não mudarem de vida. Enquanto não entregarem ao pobre o dinheiro desviado, ou não devolverem ao povo o mandato extorquido por fraude e suborno, ou não derem o direito a quem tem ou não fizerem justiça a quem merece.

Vejo, porém, que o parágrafo anterior foi um parênteses de mau gosto, filho da velha mania do escriba de botar todos os pontos nos is. O tempo do Natal e do Ano Novo não é hora de falar em inimigos, e sim hora de recordar os amigos com ternura e bons desejos.

Amigo. Palavra bonita. Talvez a mais bonita do Mundo. Não sei de experiência o que se passa no coração do misantropo, mas imagino que a maior desgraça do homem será contemplar os semelhantes ao seu redor e a nenhum olhar com amor, e de nenhum poder esperar amor em troca. E no entanto, que infinita variedade há de amores, para a gente escolher e praticar e usar e abusar! Amor de esposo e de amante, amor de pai e amor de filho, amor de avô e de neto, amor de irmão, amor de amigo, amor de conhecido e parente, de patrício e de correligionário. A este, porque é o homem da minha vida, a este porque é do meu sangue. A este porque acredita nas coisas em que eu creio, a este porque nasceu perto de onde eu nasci. Mas a este outro também podemos amar porque nasceu diferente, ou na cor da pele, ou na geografia da sua terra, – e a ele o amamos porque é o nosso contraste, a nossa compensação.

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Pego um pacote de cartas que o correio trouxe: uma moça do Rio Grande do Sul, um senhor da Bahia, um rapaz do Paraná; e até mesmo, com selo estrangeiro, uma senhora de Cuba e um estudante de Lourenço Marques. Nunca os vi, nunca os verei. O tempo curto, os afazeres, a vida trabalhosa, provavelmente não me darão tempo de escrever resposta a todos eles. Mas não pensem que foi perdido o gesto de carinho de apanhar o papel na gaveta, pegar na pena, pensar as palavras e trabalhosamente botar tudo na carta – não foi perdido! Antes foi profundamente entendida e agradecida essa espontânea generosidade, mais valiosa justamente porque é gratuita: uma pessoa abrir mão do seu tempo, dos seus pensamentos, fazer uma carta, botar no correio – só para mostrar boa vontade a uma desconhecida, para lhe agradecer alguma tola palavra que ela escreveu na revista e que incompreensivelmente lhe tocou o coração.

A esses amigos de longe e desconhecidos, mando os mais gratos votos de felicidade e alegria para o Natal de 59 e para o novo ano de 1960. Desconhecidos que eu junto aos conhecidos, bastante envergonhada pelo pouco que lhes dou, mas infinitamente agradecida pelo muito que me dão em troca do nada que eu mereço.

rachel-de-queiroz
As crônicas aqui reproduzidas podem veicular representações negativas e estereótipos da época em que foram escritas. Acreditamos, no entanto, na importância de publicá-las: por retratarem o comportamento e os costumes de outro tempo, contribuem para o relevante debate em torno de inclusão social e diversidade.
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