Para quem vem amolecido por dois meses de boa comida e melhor bebida em terras de França e Itália, a “austeridade” socialista britânica é realmente um fenômeno heróico. Ali já não se come mais: apenas se mata a fome e mal matada. Contudo, como o amor à aparência ou à tradição é a última coisa de que abre mão aquele povo, as aparências são mantidas. O “pequeno almoço”, ou breakfast, no hotel é um exemplo. É servido no quarto, vem num carrinho coberto por toalha de linho branco, tangido por um criado de libré. Os pratos fumegantes trazem as clássicas tampas de cristofle. Você levanta as tampas solenes: nunca mais infame e mesquinha boia seus tristes olhos viram. Nem na cadeia. Os ovos mexidos são desidratados — ovo em pó — e têm um sabor horrível de papelão e goma-arábica. Felizmente são em tão pequena quantidade que vai-se o “prato” todo só na prova. As duas pequenas salsichas que os acompanham pelo menos têm de salsichas a aparência; mas a película que as recobre é evidentemente feita com velha borracha de máscara contra gases, recondicionada, e o recheio se constitui de uma substância de cor sanguínea, de gosto péssimo, — talvez a famosa farinha de soja, ou “carne de soja” (soja-meat), como dizem os cartazes de propaganda. Um único pão por pessoa (medi-o: redondo, com cinco centímetros de diâmetro e três de altura) tem no mínimo quatro dias de idade. Lá não se desperdiça o pão velho; só se come o novo quando o velho acaba e então o novo já está velho…

Dentro da mantegueira ironicamente enorme, duas pétalas de manteiga — sim exatamente da espessura e do formato de duas pétalas de rosa. Chá — (uma xícara), dois minúsculos torrões de açúcar. E o conteúdo da leiteira não chega a uma xícara de café pequeno dos botequins do Rio.

Almoço e jantar não são iguais porque são piores. Embora no cardápio prometam cozinha francesa, faisão e sorvete. A “cozinha francesa” é um engodo indigno do orgulho britânico, um mito impudente. O faisão são duas patas de ave, negras e secas, aninhadas dentro de quatro batatas cozidas e untadas com alguma graxa feita de derivado de petróleo. O sorvete é uma espécie de areia, solúvel e gelada. Do café recuso-me a falar. Seria demais.

Nota-se que os nativos, no restaurante, fingem comer dos pratos por polidez, ou disciplina, ou — tudo é possível — porque acabaram se acostumando. Mas, como sobremesa, pedem uma grande xícara de leite pingado de café! A velha fome, coitados.

Como a nós repugnava esse uso bárbaro, resolvemos recorrer aos sanduíches, que parecem tentadores nas vitrinas. Mas quem vê cara não vê recheio. Os sanduíches de “carneiro” têm por dentro um pouco de tecido cartilaginoso, graxento, que gruda nos lábios e tem cheiro e gosto de couro. Os de “presunto”, “mortadela” e outros frios escondem uma matéria que oscila entre o celulóide e o papel encerado — evidentemente não comestível. Restam os de alface. Mas vocês hão de concordar que é pouco para um carnívoro brasileiro.

Os elementos do sexo forte lembram-se a tempo de que a bebida se “não é medicamento” como diz o samba, pelo menos é alimento. Mas os bares abrem às 11h30, fecham antes das 15h, reabrem às 17h, fecham antes das 23h — e fornecem umas doses tão minúsculas que não satisfazem nem um abstêmio. E então os homens vão comprar uísque em garrafa — beber no hotel, que diabo! Verificam aí, com surpresa e cólera, que dentro das Ilhas Britânicas não se vende uísque. Política de exportação do governo: vai a produção inteira para o exterior, à cata do ilusivo dólar.

Que nos restava, diante disso, senão tomar o trem e atravessar o Canal?

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Dói-me um pouco o coração fazer estas queixas. Que nem são queixas, afinal, simples reparos. Mas de qualquer forma são uma falta de lealdade para com o heróico esforço de sobrevivência do socialismo inglês. Uma das poucas esperanças — talvez a única — deste desesperado mundo é, fora de dúvida, o socialismo.

De repente, porém, lembro-me de que os ingleses estão fazendo socialismo, sim, mas só para eles, trancados nas suas ilhas; para eles, brancos, saxões, antigos senhores do mundo. Ou será que os negros da África que vivem sob domínio britânico também têm alguma esperança de que o socialismo dos amos chegue até eles? Qual a política dos ingleses e seus derivados — australianos, neozelandeses, sul-africanos, etc., em relação às populações de cor que eles dominam? Quem inventou a palavra discriminação no sentido em que a usa a língua inglesa?

E nós, mestiços brasileiros, seremos aos olhos do socialista britânico melhores do que os mulatos de Cape-Town ou os canacas do Pacífico?

Encolho os ombros, jogo no meio da rua os restos do desgraçado sanduíche. E me sinto livre de qualquer responsabilidade de coparticipação na austeridade britânica.

São brancos, lá se arranjem. E já há muita gente brigando para ser senhor do mundo. Não será mau que se abram algumas vagas na fila.

rachel-de-queiroz
As crônicas aqui reproduzidas podem veicular representações negativas e estereótipos da época em que foram escritas. Acreditamos, no entanto, na importância de publicá-las: por retratarem o comportamento e os costumes de outro tempo, contribuem para o relevante debate em torno de inclusão social e diversidade.
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