Cada guerra nova vai deixando as suas marcas na cidade. São ruas que tomam o nome de batalhas, ou praças que se batizam tendo heróis como padrinhos. E quando essa consagração não se faz oficialmente, fá-la o povo à sua moda, que é ele o grande reparador das falhas do governo. Durante a campanha de Canudos, por exemplo, tentou o governo homenagear uma glória meio discutida, aquele malfadado Moreira César, tombado às mãos dos jagunços por culpa dos próprios erros, segundo o conta Euclides, no seu impiedoso retrato do homem. Quiseram pôr no nome do coronel logo quem — a rua do Ouvidor. Mas o povo não aceitou a mudança, e do Ouvidor continuou sendo a velha rua. Decerto o povo adivinhava quem era o verdadeiro herói da campanha: o jagunço e o soldado sem nome. E querendo homenageá-lo, já que o não fazia o prefeito, deu ao antigo morro da Providência o nome daquele outro morro que ficava a cavaleiro do arraial de Canudos: a Favela, espécie de nome símbolo abarcando combatentes e campo de batalha. E Favela ficou sendo, mesmo sem placa e sem pedra fundamental, e todos esqueceram a antiga denominação de morro da Providência.

E aos poucos foi a Favela se tornando uma espécie de morro líder de todos os morros daqui no Rio; entrou para a literatura, passou a funcionar no samba, “No Carnaval me lembro tanto da Favela, ô, onde ela., ô, morava”. Quem não se lembra? Ou o outro, do português: “Mulher e a tua casinha que ficou lá na Favela?” E de samba em samba chegou até ao cinema nacional, inclusive entrou num samba-canção, aquele que as Irmãs Pagãs cantavam em primeira e segunda voz: “Tendo a cidade aos seus pés…”

Foi o período áureo. Mas aos poucos, a palavra Favela, de símbolo do morro boêmio, da batucada permanente, da felicidade irresponsável, ia se transformando no que é hoje, o sinônimo da miséria da cidade na sua forma mais sinistra: o nome de Favela desceu do morro, e passou a designar qualquer amontoado de casebres no seu estado mais sórdido sem nada de pitoresco ou de boemia feliz. Curiosa, a evolução dessa palavra, que de tema guerreiro passou a tema literário e musical para se liquidar em tema de miséria e já anda pelos glossários dos sociólogos, até em inglês, segundo vi recentemente, com esta tradução: “Negro Slum (Brasil)”.

Mas a nossa intenção não era fazer arremetidas filosóficas, era comentar a crescente multiplicação das favelas nesta terra carioca. Brotam do chão como cogumelos, parecendo nascer por milagre de algum santo ruim, — talvez milagre de Exu, que é força do mal. Vai a gente dormir certa noite olha a riba de morro defronte, não tem nada. Porém quando acorda no dia seguinte lá está o barraco nascido magicamente na terra limpa durante as horas do sono completo, com paredes de sopapo e teto de lata velha, já até com gente morando dentro, galinha magra ciscando o lixo no terreiro, cachorro sarnento, de corda ao pescoço, esquentando ao sol. E junto daquele primeiro barraco no dia seguinte já tem outro, e com mais uma semana são uma cidade, reproduzindo-se em progressão geométrica, como se se formassem por cissiparidade, feito amebas.

*

Não iremos discutir aqui o problema da desfavelização da cidade, que parece insolúvel, tratada há muito por técnicos dos mais letrados e sem remédio que se veja. Falemos antes do futuro destinado à favelagem, que parece dos mais promissores. Pois elas, aumentando com aquela fecundidade espantosa, hoje já não existe lugar na cidade, nem aterro de mangue tapado com lixo, nem morro seco, nem buraco de pedreira, onde uma favelinha não se forme. Aqui na Ilha, por exemplo; dantes havia muita casa de pobre, muito buraco, mas até pouco tempo favela propriamente não havia. Cada casa, fosse coberta de sapé ou telha, tinha sempre o seu pedaço de quintal, sua rocinha de mandioca, seu poço próprio, seu mamoeiro, seu canteiro de couve. Mas de repente a doença da favela pegou aqui, e agora elas parecem que brotam com força maior do que na cidade, — não vê que a terra é muito melhor? Se trepam pelas encostas, se apoiam umas nas outras, se arruam em qualquer aberto de praia. Às vezes até a gente fica cismando se estão pensando em vencer a tal batalha das favelas mudando os favelados para cá? Ou são favelados novos? Donde saem os donos dos barracos recém-nascidos?

Talvez seja a valorização dos terrenos a falada “febre das construções” em que se fala. As casas boas se erguendo onde dantes eram os ranchos da pobreza. Cada casa de classe que se levanta numa rua, é sinal de que pobre e bananeira teve que se mudar. E como ainda ninguém inventou um jeito positivo de acabar com gente pobre, de uma vez por todas, — o meio mais fácil é esperar que eles morram à míngua, nos casebres de sapé e lata — as mulheres entisicando, carregando lata d’água de morro-acima, os meninos se perdendo na malandragem, os homens idem.

Parece que o governo não dispõe de meios para construir casas suficientes para todos os sem casa. E se os favelados ontem eram cem mil, agora já devem passar de meio milhão. E dizem os do governo que quanto mais levantam casas populares, para a gente das favelas, imediatamente surge nova leva de gente desabrigada, pronta para ocupar os casebres abandonados, ou erguer, novos, quando os velhos não chegam.

Portanto, o remédio não há de ser apenas construir casas. Há causas mais profundas, produzindo essas ondas misteriosas de gente na miséria, que invade as cidades grandes. Eu sugeriria que dessem trabalho e trato a esse povo, não aqui, mas no interior de onde ele vem. Com o trabalho, saúde, comida e algum dinheirinho, deixasse estar, que eles faziam as próprias casas, como sempre fizeram.

Mas o Brasil é tão grande e tão pobre que o governo desanima. Prefere levantar umas casinhas, inaugurá-las com banda de música e se trancar no gabinete discutindo o nome do sucesso, esporte mais divertido do que decifrar palavras cruzada.

rachel-de-queiroz
As crônicas aqui reproduzidas podem veicular representações negativas e estereótipos da época em que foram escritas. Acreditamos, no entanto, na importância de publicá-las: por retratarem o comportamento e os costumes de outro tempo, contribuem para o relevante debate em torno de inclusão social e diversidade.
x
- +