Talvez a grande doença deste país, o seu mal maior, seja o emprego errado dos nossos recursos humanos, a mania de se situarem os homens em lugares diferentes daquele para o qual nasceram e são dotados. Põe-se um estancieiro a inventar leis, um leguleio a consertar finanças, uma flor do asfalto a cuidar dos índios, um soldado a curar doentes, um civil — bem, esse não; a não ser Epitácio, ninguém mais teve o topete de por um civil a mandar nos fardados.

Se nos corrigíssemos, se contratássemos técnicos americanos para cursos de orientação vocacional, se se consertassem todos, nomeantes e nomeados, para entregar os homens às posições a que Deus os destinou, quem sabe o Brasil tomaria jeito?

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Vamos começar os exemplos bem do alto, pois do céu é que se desce. O homem que anda aí de faixa ao peito, assinando os papéis do governo, pondo a funcionar exaustivamente as viaturas presidenciais, quer aéreas, quer terrestres: por consenso universal de todos que o conhecem, trata-se de pessoa excelente. Boa prosa, vivo, gracioso, com muita capacidade de improvisação, com enorme dose de um dom muito raro, que na profissão teatral se chama “presença de palco”, e que poderemos também chamar de magnetismo; senhor de resposta pronta, de enorme mobilidade, dons coreográficos espontâneos, capacidade de aliciar seguidores com promessas mirabolantes — era esse um homem que, por virtude de nascimento, vinha talhado para o show-business. Mas os fados loucos e a sua louca ambição, em vez de o levarem a fugir com o primeiro mambembe que passasse em Diamantina e assim iniciar uma carreira promissora, os fados se iludiram e o transviaram pelos mais inesperados caminhos: primeiro, telegrafista, depois, médico, depois, coronel da polícia estadual, prefeito, deputado, governador, presidente, milionário do ar. Em todas essas múltiplas carreiras saiu-se mal, e a prova é que mudou de rumo com tal frequência. Os inimigos atribuem o insucesso a deficiências básicas de caráter do homem, o que é injusto, talvez. O de que o homem padece é apenas de falta de vocação. Ele é como um escarpim de baile num pé de vaqueiro, não cabe, não serve, não dá certo! Entretanto, entregassem-lhe uma companhia de teatro para empresar, dessem-lhe ao menos um papel de animador de show de boate, e que gênio específico a ribalta nacional, quiçá a ribalta internacional não ganharia! Tudo aquilo que é hoje negativo no supremo magistrado da nação, seria valor-ouro no competidor do sr. Carlos Machado. Sim, teríamos nele um novo “rei da noite”. Aquela simpatia, aquele sorriso tão fácil, o audacioso senso de publicidade, a capacidade sensacionalista de oferecer papel pintado por ouro, aquela voz de mágico ou de compère ao microfone, que a gente escuta na Hora do Brasil com a vaga sensação de que apanhou no rádio a onda errada: “Agora, senhoras e senhores, teremos o prazer de apresentar o número mais sensacional de todos os tempos, coisa que não se tentava no país há mais de um século, desde os recuados tempos de D. João Charuto, agora (e a voz se eleva sobre o fundo de tambores em surdina) AGORA — A ABERTURA DOS PORTOS DO BRASIL!...” (Música vibrante, Hino nacional.)

Não é assim que ele faz? No dia seguinte não aparece porto aberto nem nada, mas isso não tem importância. Mágico também não faz mágica, o que faz é ilusionismo — e justamente o que ele é, é um ilusionista.

Outro há, sim, outro, que também nasceu para o show business, embora de saída não o pareça. A questão é que teremos de lhe destinar gênero mais severo e perigoso, longe das amenidades do primeiro. Este nasceu para circo, para domador. Entrar em cena, olhar de águia, queixo para a frente, rosto glabro e rubro, abotoado na farda justa de alamares vermelhos (dizem que, sem farda, ele se acha despido) botas reluzentes, e um leão ou dois! Sem esquecer a pistola 45 à cinta e, em lugar do famoso volume de leis, o chicote da profissão. Faria a felicidade das plateias amantes do gênero e seria ele próprio o mais feliz domador do mundo — sem carecer de restrições mentais, sem Câmaras, sem leis, sem democracias, sem jornais que o inibissem, mostrando a todos os distintos públicos do Brasil, da América e da Europa, como ele é valente, como é danado, como acorda cedo, como todo o mundo o inveja e respeita, e como, a um simples estalo da ponta do seu chicote e a um hop gutural que emite, faz agachar-se e tremer o chamado rei dos animais!

E assim são quase todos: como aquele moço da Bahia, que faria história se ficasse nas tribunas de júri do interior e veio se perder aqui, melancolicamente, tecendo chicanas de rábula na liderança parlamentar. Ou aquele outro líder, que já foi carrasco e dava tanto para o ofício, que só o deixou por causa do lockout democrático. Ou o senhor gordo que saiu para embaixador na América, embora o seu habitat ideal fosse um balcão da rua Acre, da qual ele já seguia até mesmo a tradição de começar de caixeiro e acabar como genro e sócio. Ou o outro, ainda, o rústico peão de língua perra, que teimava em se eleger parlamentar para jamais pôr os pés na Câmara, e hoje, guindado à presidência da Câmara Alta, se o forçam, de longe em longe, a comparecer e a abrir a boca, fá-lo tão constrangido, que alguns juram que há um ventríloquo atrás dizendo o que ele finge falar, embora apenas mexa os lábios…

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E até mesmo entre os que respeitamos e amamos, o único sobrevivente do 18 do Forte, não será outro caso positivo de engano de vocação? Será ele destinado a essa luta feia e desonesta que se chama política nacional — um homem que nasceu para o celibato, para a solidão, a pobreza, o silêncio, que, se vivesse alguns séculos atrás, seria, decerto, um anacoreta, mais séculos atrás seria um mártir cristão, e que, vivendo nos nossos dias, ninguém sabe como escapou do convento?

rachel-de-queiroz
As crônicas aqui reproduzidas podem veicular representações negativas e estereótipos da época em que foram escritas. Acreditamos, no entanto, na importância de publicá-las: por retratarem o comportamento e os costumes de outro tempo, contribuem para o relevante debate em torno de inclusão social e diversidade.
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