Quem vive por Copacabana, pela Tijuca e pelo subúrbio, a verdade é que não conhece a cidade, conhece apenas o seu próprio bairro que, como dizia Noel, é sempre uma cidade independente. Mas a cidade propriamente dita, essa fica limitada pelo cais do porto, o canal do Mangue, os Arcos e o morro Santo Antônio. Dentro de tais fronteiras vive realmente o que sempre se chamou “a cidade” e que a velha cidade do Rio representa no seu feitio mais típico, com as ruas de nomes veneráveis imunes aos avanços da nomenclatura arruísta que infesta todos os outros logradouros do Brasil. É o calçamento, o bonde, o pedestre, na sua plena integridade. O comércio intenso e sem ouropeis, a vida difícil e risonha, a superpopulação indiscriminada, o paraíso do botequim, a terra onde não se pergunta história de ninguém. Mora-se de todas as maneiras, em casas de cômodo e fundo de loja, em sobrados de azulejos com biqueiras de telha da China que, sozinhas, valem o preço do pardieiro todo; mora-se acumulado, em vagas, em porões e em sótãos. Mora-se até em apartamento, – e os edifícios se erguem como castelos solitários e os seus habitantes são a aristocracia do território livre. Os botequins em geral se chamam confeitarias ou “bares” e têm nomes poéticos ou malandros – sei de um até chamado, se não me engano, “Espírito de Porco”. Mas há também o “Estrela da Manhã” e há o “Miss Brasil” com retrato da Miss de 29 feito num medalhão de vitraux, por cima do balcão de refrescos.

 

Tem crianças, ativas, diligentes, que sabem tomar as conduções mais incríveis, e cujo sonho secreto deve ser matar de bodoque as cutias da praça da República. Tem bombeiros passando a toda hora, nos seus carros cor de chama, com a sirena solta a todo o pano, dando um aperto feliz no coração das pequenas.

 

Ali ⏤ o mundo de todos se limita ao próprio asfalto que pisam, ao pequeno céu de cima que só faz chover ou dar sol sem nenhuma outra preocupação metafísica. Sendo o bairro internacional, é por isso extremamente brasileiro; ninguém alega nem evoca pátria velha, seja Portugal ou França, ou Líbano, ou alguma comunidade mal ferida de israelitas da Europa Central ou dos Balcãs, que naturalmente não pode ter deixado muitas saudades.

 

Todos ganham a vida, em geral miudamente, mas com grande atividade. Vão à igreja, vão aos seus cinemas sem poltrona estofada nem ar refrigerado, mas onde ainda se compra uma tarde inteira de orgia movietone: dois dramas grandes, cinco “trailers”, dois jornais, a série e um desenho, por qualquer coisa em redor de três mil réis. Bebe-se – alguma cachaça, porém mais cerveja. Ama-se – mas tanto o amor amatório como o profissional é mais discreto do que nos bairros elegantes. Segundo foi dito acima, o pessoal é ocupado, não tem tempo para exibições. Anda-se em geral de bonde, que cruza o território em todos os sentidos e nas direções mais fantasistas, levando às vezes hora e meia para ir da Central às barcas, passando pela Lapa e outros desvios. Vende-se tudo – seda e ouro, peles, sapatos, pedras preciosas, louças, ferragens –  vende-se tudo ali, menos as grandes etiquetas. De manhã cedo já está quase todo mundo na rua, as donas de casa na fila do leite e da carne, pois que ali em geral não há criadas, as crianças rumo à escola ou outros rumos particulares, os comerciantes abrindo as portas de aço, os ambulantes enchendo as ruas de pregões. E no meio da confusão deste mundo de hoje, de suas políticas, de suas angústias, de seu spleen, de seu desespero farto ou da sua miséria clamorosa, a gente dessa cidade do coração do Rio parece não partilhar da angústia universal – não oferece contrastes, não desperdiça e não repousa, e vive sua vida particular como se dentro do planeta Deus houvesse criado uma ilha de paredes velhas, uma espécie de Shangri-lá comercial e ruidosa, unicamente para o uso deles.

rachel-de-queiroz
As crônicas aqui reproduzidas podem veicular representações negativas e estereótipos da época em que foram escritas. Acreditamos, no entanto, na importância de publicá-las: por retratarem o comportamento e os costumes de outro tempo, contribuem para o relevante debate em torno de inclusão social e diversidade.
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