O título, Eterna infância, é de uma antologia de contos que procura “dar ao leitor uma visão panorâmica de como os escritores brasileiros trataram o belo e difícil tema da infância”, segundo diz a orelha do volume, acrescentando ainda esta advertência: “Não é um livro para crianças, mas um livro sobre crianças”.

Poucas vezes tenho encontrado uma antologia organizada com tanto equilíbrio, aproveitando realmente a nata, o melhor do que há no gênero na nossa literatura. Se houve alguém esquecido — no momento não me ocorre nenhuma omissão especial — mas se houve e é natural que a houvesse, pois o livro é de pequeno formato — a seleção foi tão admiravelmente estudada, que dá ao leitor uma impressão integral de coisa realizada e completa.

Começa a coletânea com dois contos clássicos por todos os motivos: o “Conto de escola” de Machado de Assis e o “Negrinho do pastoreio” de Simões Lopes Neto. A esses seguem-se os mestres da idade mais moderna — mas nem por isso menos clássicos — Lobato, com a sua “Negrinha”, Graciliano Ramos com qualquer coisa que não sei se é conto propriamente, mas sei que é uma maravilha, o “Piá não sofre? Sofre”, aquela joia dolorida do grande e saudoso Mário; “Tati, a garota” de Aníbal Machado — a menina Tati, que é um raio de sol no meio dum mundo escuro e desesperado; o “Infância” de Ribeiro Couto, lido há tantos anos e relido agora com o mesmo encanto; e logo depois a deliciosa, irônica, essencialmente rodriguesca história de Rodrigo Melo Franco “Quando minha avó morreu”, lírica e desumana como à própria infância.

Em seguida a esses mestres consagrados, mortos e vivos, vem um conto muito bom de autor que não era meu conhecido — Ezio Pinto Monteiro, numa página comovida, que não destoa em nada da companhia ilustre, onde a puseram. Porque logo depois do “Chico” de Ezio, aparece o ilustríssimo “Gaetaninho” de Antônio de Alcântara Machado, senhor de um lugar de destaque não só no meio da bagagem literária do próprio Antônio, mas dentro do que há de melhor na literatura nacional. Marques Rebelo comparece com “Vejo a lua no céu” — e de Rebelo não há a acrescentar nem comentários nem elogios, basta dizer-lhe o nome, que é o do príncipe dos contistas deste país. “A fuga” de Francisco Inácio Peixoto, esse confesso que não o pude apreciar direito, fez-me bastante mal, recordando um incômodo episódio de infância, no qual, feito o Arturzinho, atirei uma tesoura em meu irmão. Tive mais sorte que o pequeno da história, porque meu irmão não morreu, foi só ferido de leve — de levíssimo. Mas a sensação do crime que ficou no outro, essa ainda é viva e ainda a conservo ardente na arca do peito, bem em cima do osso externo, no mesmo lugar em que a tesoura bateu... lá nele.

O “Acorda, preguiçoso!” é a contribuição do nosso prezado Aurélio Buarque de Holanda, mestre da história curta, mestre da língua, mestre de todos nós. E nesse conto, que é um poema de ternura humilde e de saudade, sente-se, entretanto, aquele travo de impiedade meio sádica do implacável fotógrafo do “Retrato de minha avó”. Em verdade é curioso, homem tão amorável, incapaz de um gesto mau, que jamais soube ferir ninguém por gosto, ter aqueles traços de perversidade muito sutil e quase sadista, como por exemplo a sensação de descida de posto na repartição do coitado que perdera a filha, ou aqueles sorrisos no enterro.

Joel Silveira assina com um canto de Natal, bastante belo; e Fernando Sabino, esse moço que anda derrubando muito velho medalhão do seu coqueiro, apresenta uma fita de série muito dorida.

E por fim — last but no least — fechando a coletânea com chave de ouro, Accioly Netto nos dá o seu conto “O tamborim”, que já era meu conhecido e agora, relido fora da desarrumação das páginas da revista, ainda parece melhor. O drama do garoto que sonhava com um tamborim, e a crueldade de arrepiar, embora inconsciente, dos pequenos assassinos do gato, e outra espécie de crueldade, — essa bestial e conscientíssima — do bodegueiro malvado, e a sentença de trabalho forçado que o pequeno cumpriu como uma dívida, e o doce e triste fim do Dico, na terça-feira de carnaval, enterrado com o seu tamborim. Tudo isso contado com a leveza, a precisão delicada, indispensáveis a quem lida com coisas da infância.

Concluído o livro — fica na gente uma certa angústia — angústia revivida da infância, que é realmente um tempo de tragédias e lágrimas, não o sonho idílico do pobre Casimiro, atrás das asas ligeiras das borboletas azuis.

E no fechar do volume lembrou-nos agora a omissão que não conseguíramos fixar no princípio destas notas: por que nela não aparece um único nome de mulher? Afinal a mulher é por definição a intérprete especializada da infância. Não digo isso porque me candidate — nada teria que prestasse no gênero para oferecer à coletânea de Herberto Sales. Mas as outras — tanta mulher escrevendo tão bem neste Brasil, será que nenhuma se arriscou ao tema? Não deixa de ser curioso.

rachel-de-queiroz
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