Em todos estes nossos anos de república e, por mais convulsionados que fossem os seus períodos de governo, todos os nossos presidentes vinham morrendo honrada e sossegadamente nas suas camas. Mesmo Deodoro, o proclamador. Mesmo Floriano. Porém o único presidente que se fez ditador morreu tragicamente, por suicídio: como que das consequências da ditadura.

E sempre tem sido assim, no mundo, desde César e mesmo antes de César, acabando em Mussolini e Hitler. E quando não termina em assassinato, execução ou suicídio, a ditadura deposta se dissolve em grotesco, como esse lamentável Perón que se arrasta de exílio em exílio, defendendo a mísera vida, preparando golpes frustrados, gastando o dinheiro mal ganho, numa situação tão intolerável que só a sua sensibilidade pervertida consegue enfrentar. Getúlio, que era orgulhoso e era valente, e gostava do poder pelo poder, e não pelo dinheiro ou pelas regalias do ofício, não teve forças para enfrentar as humilhações que o ameaçavam naquela deposição muito diferente da primeira ― e matou-se.

Não estou a dizer que fez bem em matar-se; claro que não tento fazer a apologia do suicídio. Mas, homem sem Deus evidentemente que ele era, naquele desespero em que se via, naquela tremenda solidão, com tudo desmoronado ao seu redor, todas as confianças traídas, o famoso mar de lama cada vez mais se cavando aos seus pés ―  pareceu-lhe que outra porta não havia e procurou voluntariamente a morte. Sendo um valente, repito-o, procurou morte arriscada e difícil, e deu um tiro no peito.

Aliás, no fim de Vargas, um dos aspectos que mais me impressionou foi esse suicídio de moço num homem de setenta anos. Já a simples ideia da morte voluntária, qualquer que seja a forma de sua execução, não parece coisa de velho, pois de um velho não se esperam esses paroxismos de desespero que levam ao suicídio. Só à inexperiência, à intolerância da mocidade, é que agradam as soluções radicais para um problema pessoal. (E é uma mistificação grosseira pretender que Vargas se matou numa voluntária imolação política, e não em virtude de um drama íntimo). Os velhos, a longa vida já lhes ensinou que não há beco totalmente sem saída, neste mundo; é só usar da paciência e atenção e sempre se descobre a providencial porta falsa: Mas Getúlio, ele, o contemporizador por definição, ele, o homem do “deixa como está para ver como fica”, parece que tinha nas suas veias de ancião um sangue turbulento de vinte anos. Desesperou-se como um adolescente ― e matou-se.

Ou terá sido antes o tédio que o matou? O tédio tão natural no céptico que ele era.  ― A fadiga ante a crise, ter que repetir a penosa encenação, recolher, refazer os restos dispersos da batalha, rever a fuga dos parasitas, repetir a monótona contagem das deserções e das covardias, esperar numa longa paciência que se reagrupasse o bando disperso ao pé da bandeira derrubada, cada vez acreditando menos na existência dos sinceros, e menos fiado na fidelidade dos amigos?

Mas nós estávamos falando era na terrível sorte que quase sempre espera os ditadores ao fim do caminho, roubando-lhes uma morte honrada e pacífica. O ambiente de ódios e frustrações, a cadeia de ressentimentos que eles criam ao redor de si, parece que propicia a criação do clima dramático que se resolve em fim wagneriano. Aí, não é tão doce assim o quinhão dos ambiciosos! A princípio, quando o demônio os tenta, tudo parece suave, fácil ― estrada de flores, aberta por batedores alados e ao fundo uma porta que já nem tem mais trancas, basta forçar um pouco ― veja! ― ninguém defende. Mas, arrombada a porta, invadido o palácio, passado o primeiro assombro, verifica-se que os defensores vão surgindo de modo sutil, brotando não se sabe como, nem de onde. Vão se arregimentando; e acabam lutando mesmo, matando e morrendo.

É que os homens padecem de um singular ressentimento contra os que atacam aquilo que eles haviam consagrado como o seu direito. Não há fábula mais enraizada na natureza humana do que aquela do cachorro e do lobo: as delícias sibaritas da prisão contra as selvagens alegrias da liberdade. É singular, é estranho, é talvez estúpido, mas os homens acabam sempre preferindo a liberdade. Mesmo que, antes, por desânimo, por fraqueza ou por miséria, tenham aparentado aceitar, chegassem mesmo a aplaudir o golpe de estado que em vez de um governo lhes dá um senhor. Aceitam, mas ressentem. E mesmo na melhor das hipóteses, quando o déspota chega a se revelar um bom déspota, um tirano paternal, os homens começam a puxar pela coleira, sufocados pelo intolerável aperto, ― aperto esse (quem sabe?) que talvez seja precisamente obra da gordura que lhes engrossou o pescoço... E dão para se reunir e conspirar. O ditador, revoltado contra aquela ingratidão e contra a quebra da disciplina e da unanimidade para ele essenciais, toma medidas drásticas. E então a luta está travada e só se acaba quando a ditadura se acaba.

A moral do caso é esta: mesmo que alimentem as melhores intenções, os candidatos a ditador devem pensar muito antes de se atirarem à terrível aventura. Como toda estrada inventada pelo diabo, a ditadura só tem uma saída: o inferno. Inferno neste mundo ou no outro, feito de enxofre ou de desespero, mas inferno sempre.

Dirão eles que só visam ao bem, que só pretendem o bem de todos. Será. Não digo que sempre, mas algumas vezes será. Contudo, esta louca raça de homens não leva em gosto que lhe imponham o seu bem. Os padres e os filósofos lhe inculcaram tão profundamente a ideia de livre arbítrio, que nada lhes parece desejável e legítimo, antes pecaminoso e intolerável, se não vier com a chancela desse livre arbítrio indispensável para eles o seu bem, ou simplesmente o Bem é só um: a conquista penosa e cotidiana, soma de tentativas individuais, de erros e acertos, da variedade infinita de opiniões e desejos, de renúncias, sonhos, heroísmos, de todos somados, sim todos: ― mas um todo onde cada um tem a sua vez e o seu lugar.

rachel-de-queiroz
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