Fonte: Caderno B, Jornal do Brasil, de
Num momento particularmente difícil da minha vida, vi tudo desmoronar. Tudo. Pensei que deveria guardar silêncio, ou então falar de outra coisa. Depois compreendi que a minha vida é de papel, e que no papel deve ser registrado o acontecimento. (Estou acordando completamente embriagado; talvez seja esse o acontecimento.)
Depois de tentar o diálogo com diversas pessoas, aceitei a teoria da minha singularidade. Olhei-me no espelho e disse: “Estou no ventre da baleia, tal como Jonas. Já me suicidei tantas vezes…” O caso é que, depois de ter transformado a minha vida num caso de papel, fui invadido por um pudor que não estava na minha formação. Graças às crises cíclicas insolúveis em que me meto, aprendi que o pudor está dentro da hipocrisia, que está dentro da mentira, que está dentro da... baleia. Então eu vinha vivendo sem pudor. Mas ninguém me acompanha nessa decisão — ou atitude. Planejei, conforme vocês viram, relembrar a minha infância. E relembrei, sem comunicar a ninguém. E me bateu aquela velha angústia que é o pudor: quais são as coisas que se dizem, e as que não se dizem? Por que estaremos sempre guardando palavras que, ditas, nos aliviariam? De onde veio o segredo, que é mãe da mentira? Quem é que disse que o ser é sigiloso? Por que sofremos? Por que não tenho eu coragem de escrever um livro sobre mim?
A verdade é que uma imensa piedade paira sobre os despudorados; e quem tem pudor tem medo dessa piedade. Vivemos um momento de sofrimento universal, nacional e pessoal, mas tudo se passa como se este fosse o melhor dos mundos. Ninguém quer chegar lá, ou então são poucas as pessoas que estão aparelhadas para chegar lá. Agora, onde é lá? Eis o problema.
A religião? Eu nasci pagão e me crismaram. Não tive escolha. Passaram um pouco de cinza na minha testa e está para sempre dito: “Não és mais pagão”. Descurte essa, bicho…
Que loucura! É uma exclamação que temos, o Antônio e eu, quando contemplamos uma situação absurda: “Que loucura”! Ou vamos dizer, neste texto perfeitamente patético, no qual estou lutando para vencer o pudor e o medo: que censura!
Não posso escrever uma única palavra que não deva ser por mim mesmo estudada à procura de algum som que indique uma predisposição minha contra a autoridade.
Sendo assim, fiquei sentado numa pedra, ouvindo Mozart e dizendo: “Já me suicidei tantas vezes... Desta vez, quem me salvará”? Minha solidão é brasileira, reside no fato de que mergulhei nos surrealistas e nos existencialistas e que ninguém, aqui no Brasil, me acompanhou nessa jornada pelas veredas sombrias. É tudo gente interessante, enquanto eu queria e sou um escândalo.
Ouvindo Mozart, lembrei-me da lei da disposição dos espíritos em relação aos alimentos disponíveis, formulada por Virginia Woolf. Diz ela que, havendo uma estante com livros e uma angústia não formulada, basta você pegar um livro qualquer e abri-lo numa página qualquer, que a sua angústia estará nessa página, perfeitamente legível. É uma lei psicológica, como a da gravidade — ou melhor, da relatividade. Pego um livro qualquer à procura da minha angústia e
leio:
“Nossa alma rejuvenescida mostrará sem pudor as suas qualidades puras. A humanidade atual cresceu numa atmosfera de ódio febril, de amor, de falsos julgamentos que a envenenam. Entretanto, que se fortifique nela o hábito, não de odiar e amar, não de condenar ou absolver, mas de compreender, e eis que uma humanidade totalmente inocente e sábia tomará o lugar de nossa velha raça iníqua, envenenada de ressentimento por seus remorsos ilusórios”.
Ainda com Nietzsche a palavra é a minha esperança: “Não basta sofrer para ter direito ao pessimismo”.