Fonte:  Caderno B,  coluna "O homem e a fábula", Jornal do Brasil,  de 13/12/1964.

Jogam Flamengo e Botafogo, e meu coração se divide. Como qualquer brasileiro, nasci Flamengo; mas, aos 18 anos, decidi romper com todos os preconceitos, e mesmo com as crenças mais sensatas que vinha acumulando. Para começar tudo de novo. Resultado: fiquei sem um céu para onde ir depois da morte, e sem um time de futebol que me fizesse experimentar simbolicamente, nos fins de semana, as alternativas de vitória e derrota em que se resume a aventura humana. Uma tarde de domingo, jogavam Botafogo e Fluminense em partida final de campeonato. Toda a cidade estava no Maracanã. Andei pelas ruas desertas, indiferente à sorte do campeonato. Cheguei ao Metro Copacabana e entrei para ver um filme infantil. Lá dentro eram raros os adultos. Na saída, com o sol já se apagando, fui andando na direção do Roxy, e na minha frente ia uma família muito jovem: o marido com uns 40 anos, a mulher grávida de seis meses. O marido levava ao colo um menino pequeno, e a mulher conduzia pela mão dois outros meninos. Fui andando a pensar na alegria que eles teriam se dentro de três meses nascesse a primeira menina. Provavelmente iriam ter o quarto filho apenas para alegrar o homem, cujo sonho era ser pai de uma gentil criança do sexo feminino. A jovem senhora grávida era bela, de traços finos; usava sandálias sem alças e mostrava uns pés verdadeiramente sublimes. Íamos andando assim quando topamos com um cidadão que, encostado a uma árvore, ouvia um rádio de pilha. Ao vê-lo, o homem, a mulher e as crianças ficaram paralisados. O homem e a mulher se entreolharam em silêncio e ficaram ainda algum tempo indecisos. Depois, o homem, sempre com o filho caçula no colo, aproximou-se cautelosamente do cidadão que ouvia o rádio e falou:

— Por favor... Quanto foi o jogo?

— Seis a dois — disse o outro.

— Ah, seis a dois... Mas para quem?

— Para o Botafogo, naturalmente...

— Naturalmente! — exclamou então o pai de família, e a jovem senhora ficou com o rosto iluminado. Os dois meninos que iam a pé pularam de contentamento. O pai entregou à mulher o filho de colo, beijou-a na testa, deu adeus aos outros filhos e saiu correndo na direção de um táxi que passava. Entrou no táxi e seguiu para o Túnel Novo.

Fiquei curioso para saber o que se passara. Contemplei algum tempo a jovem mulher que seguia agora o seu caminho, com dois filhos pela mão, um terceiro no colo e um quarto na barriga. Adiantei-me e lhe disse:

— Queira desculpar, mas... Que foi que houve?

— O Botafogo venceu — disse ela — e ele foi para a sede do clube comemorar.

— Mas — insisti — se ele gosta tanto assim do Botafogo, por que diabo não foi ao Maracanã? Por que se meteu no cinema?

— Para evitar o enfarte! — disse ela, com simplicidade e também com uma espécie de triunfo na voz.

— Ah, sim... O enfarte...

A mulher e os filhos seguiram caminho. Entrei num bar e pedi um cafezinho. A partir daquele dia o meu time seria o Botafogo.

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