Fonte: Caderno B, Jornal do Brasil,  de 29/10/1980.

Cerca de 13 horas de quinta-feira — uma tarde brumosa — o homem atravessou o largo do Bar Vinte e entrou numa casa de flores. Foi atendido por um rapaz solícito, enquanto um senhor, com jeito de dono do estabelecimento, negociava um buquê de margaridas com uma senhora extremamente fidedigna no papel de mãe de dois filhos adolescentes, um dos quais sonha com uma motocicleta, mas ela acha menos perigoso oferecer-lhe, no Natal, um fusca amarelo.

O recém-chegado disse:

— Por mim, todas as flores são belas. Mas vou almoçar com uma querida amiga e outra amiga minha, a quem consultei por telefone, sugeriu flores do campo como o ideal. O senhor tem flores do campo?

— Sem dúvida — respondeu o rapaz, usando o linguajar do best-seller americano traduzido literalmente e, por conseguinte, introduzindo nesta narração uma atmosfera semântica favorável à violência e ao mistério. — Sem dúvida — repetiu. — Nossas flores do campo são as mais frescas da Zona Sul.

O rapaz ergueu de um jarro um buquê de florezinhas róseas, amarelas, branquinhas. Ele as envolveu em papel branco e fosco. O homem que fizera a encomenda apanhou aquela festa multicolor, que lhe lembrava os jardins do acaso plantados à beira das estradas que sobem as serras, e se retirou da loja. Ele foi andando a caminho do mar. Observando a tarde enevoada, pensou “Tal qual este buquê de flores, a primavera no ar circundante também parece embrulhada em papel fosco”.

Ele não chegou até o mar. Parou num edifício novo, de desenho moderno, e se encaminhou à portaria envidraçada. Surgiu um nordestino uniformizado. O homem se identificou e informou estar sendo esperado no terceiro andar. A porta foi aberta e ele entrou no saguão. Apertou o botão do elevador, que se abriu automaticamente, e entrou.

Enquanto subia ao terceiro andar, ocorreu-lhe um pensamento estranho: — E se fosse um assalto? E se ele fosse um assaltante? E se trouxesse um revólver em sua bolsa de tergal a tiracolo?

Não era, não. Ele era um homem pacífico: embora estudioso da violência, pregava e praticava a não violência, embora ninguém percebesse isso. É difícil perceber quando alguém é um não violento, conforme observa com justeza um personagem de Millôr Fernandes na peça os órfãos de Jânio. A não ser quando o indivíduo em questão pratica objetivamente a não violência, como é o caso do argentino Esquivel, Prêmio Nobel da Paz. O homem do buquê de flores pensou: “Por que ainda não se fez a estatística internacional dos não violentos? Seremos mais ou menos numerosos que os violentos? Eis aí uma questão de que a UNESCO poderia ocupar-se”.

Ele almoçou dobradinha com a dona da casa e uma segunda mulher, uma bela criatura espiritualizada — cuja alma, desbordante de mística paixão, ela própria desconhece. (A anfitriã, por seu lado, era de uma beleza estonteante e vivia permanentemente perto do coração selvagem da vida). O almoço transcorreu em calma, com música popular e doce de mamão por sobremesa.

Mas poderia ter sido um assalto, não poderia? Já houve casos assim: a campainha toca, o morador vê o florista pelo olho mágico, abre a porta e se depara com um buquê de flores e um Smith & Wesson calibre 22. O experiente dr. Otávio Vidal, delegado titular da 14° DP (Leblon e adjacências) lhe contara (ao não assaltante de bolsa a tiracolo) o caso dos rapazes que traziam uma carta da moça que mora na Holanda. Apresentaram-se à mãe dela, anunciando em inglês que lhe traziam uma carta da filha. Por ser verdade que sua filha vive na Holanda, a mãe saudosa abriu a porta e o assalto se iniciou. O delegado Vidal comentou:

— Antigamente, era fácil saber quem era quem. Os bandidos eram em geral analfabetos e produziam seus crimes através de meios rudimentares. Agora, eles estão sofisticados. Aqueles dois rapazes eram brancos, vestiam-se com apuro, falavam inglês... Não estavam drogados e a ninguém ocorreria que fossem bandidos.

Enquanto isso, a quadrilha de paletó e colete matava um guarda e saqueava uma joalheria, em Copacabana. O homem do buquê de flores pensou num romance que havia escrito, no qual o marginal de vulgo 1001 sofre uma metamorfose, despindo seus andrajos e trajando roupas finas.

Pensou: “Os bandidos civilizam-se! Quanto mais ferozes, menos trescalam sua ferocidade. Na confusão, com inocentes e culpados aparentando o mesmo status social, o Rio de Janeiro marcha para um desastre de consequências inimagináveis”.

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