Fonte: Caderno B, Jornal do Brasil, de 2/06/1976.

40 meninos e duas meninas, amontoados por três dias em quatro celas da delegacia policial de Duque de Caxias, foram liberados por ordem do juiz de menores local, sr. Libórnio Siqueira. Correndo alegres, deixaram-se filmar pela televisão e fotografar pelos jornais. Pelo menos 15 dentre eles não corriam em direção alguma. Apenas fugiam das grades, que para eles significavam a perda do único bem que possuíam: a liberdade.

Chama-se liberdade, no caso, o fato de não ter um lar. Liberdade é dormir numa galeria, sob a via férrea, e comer amontoado numa grande vasilha, fornecida pelo dono de um bar das imediações. Alta madrugada, pouco antes de encerrar o expediente, o dono do bar enche a grande vasilha com restos de comida, e assim os garotos se alimentam, e é esta a liberdade deles. Dormidos e alimentados, lá vão eles, ao nascer do dia, para a louca aventura que é a vida em tais condições. No tempo ocioso, praticarão pequenos furtos, pequenos assaltos, e sem dúvida encontrarão pequenas alegrias. Ou o pequeno susto: a blitz policial, que os apanhará desprevenidos e os levará de volta ao xadrez, onde ficarão até que novamente o juiz de menores os devolva à rua.

Eram 40 meninos e duas meninas. Dez outros continuaram presos naquele dia — dez delinquentes de alta periculosidade, acusados de arrombamentos e latrocínios. Dez bandidos reincidentes e temíveis. O juiz esperava que a Funabem se interessasse por eles, mas a Funabem não se interessou. Apareceram três pais ou responsáveis e levaram três deles. Ficaram sete. Entre os sete estava Jorge Luis Chagas.

Jorge Luis Chagas devia ser magro de fome e não possuía necessariamente uma cor de pele, pois nesse estado de miserabilidade todos são pretos. Pode ter olho azul e cabelo louro que continua preto. Com 17 anos, de profissão assaltante, Jorge Luis Chagas já estava há sete meses no xadrez de Duque de Caxias, quando o juiz Libórnio Siqueira o fez assinar um termo de liberdade vigiada e o soltou. Uma vez por mês, deveria apresentar-se ao juiz de menores, a fim de comprovar que se achava em situação socialmente aceitável. Terça-feira, 25 de maio, era dia de apresentação, Jorge Luis não se apresentou.

Dois dias antes, a 23 de maio, cinco corpos foram encontrados no Jardim Metrópole, em São João de Meriti. Torturados e fuzilados. Um dos mortos era Jorge Luis Chagas.

Eis aí: a biografia de uma criança brasileira. Nasceu, cresceu, matou e foi morto na Baixada Fluminense. Nasceu na miséria, cresceu na rua, onde foi educado para ser bandido, tirou o diploma de bandido nas prisões, resistiu à violência com violência. Viveu como um cão e morreu como um verme. E não terá sequer o consolo póstumo de um destino examinado em sua singularidade. Era um a mais, entre os chacinados da Baixada Fluminense, e não era nada além disso.

Chamava-se Jorge Luis Chagas. Tinha 17 anos. Nada mais; nunca mais.

jose-carlos-oliveira