Fonte: Caderno B, Jornal do Brasil, de 30/05/1979.

Ela bebe em goles morosos, saboreados gota a gota, a aguardente Adega Velha que me presenteou um amigo quando eu era boêmio militante. Não, não me importo que bebam em minha presença. Até gosto. Brindo essa libação à minha maneira atual, com chá e bolo. O álcool não me faz falta.

— A mim também não faz falta, a não ser em certas ocasiões, quando estou deprimida...

Leila não é a primeira pessoa a me dizer isso. Parece natural que pessoas deprimidas se refugiem nos bares. Ora, nunca estou deprimido. Será defeito meu? Defesa? Sei lá. Às vezes estou triste; outras vezes, trado; passo dias inteiros sozinho em casa. A solidão me aquece. Tenho insônia — minha insônia aliás tem uma história, mais tarde contarei. Os insones tomam comprimidos para dormir, andam nervosos pela casa silenciosa, vão à janela espiar a rua vazia na madrugada, decifram problemas de palavras cruzadas, leem livros policiais ou calhamaços letais.... Tudo fazem para esquecer que não estão dormindo. Ora, eu tudo faço para aproveitar do máximo o fato de não estar dormindo; continuo estendido na cama, a sonhar acordado; mas já falei, isso fica para depois, minha insônia “daria um romance”...

De descendência árabe, Leila é linda. Graças a Deus o dr. Pitanguy não passou por aqui. A imperfeição, determinada pelo tipo racial, é formosa: o nariz tem um osso duro, curto, perto dos olhos; e um osso longo, mole, que desce a caminho dos lábios. O duro e o mole quebrangulados de Leila definem sua genealogia e caracterizam sua beleza, tal qual a cor de sua tez, de seus olhos e de seus cabelos, negros azeitonados. O dr. Pitanguy não tem nada a fazer aqui.

Dez anos atrás, ela chorava no antigo Degrau. Já flertávamos de longe. Nessa noite eu estava alegre e com flores. Ela chorava perdida no meio dos notívagos ruidosos, bebia caipirinha. Acheguei-me com as flores. Fui recebido com indiferença. Havia uma batucada, era uma noite quente de janeiro e todo o bar cantava sambas. Comandei um samba dengoso que me pareceu apropriado, e que na época tocava em todos os rádios. O Degrau inteiro cantou comigo, todos de olhos voltados para Leila, sorrindo para Leila, convidando Leila a sair da fossa e entrar na festa... Você abusou... Tirou partido de mim e abusou... Tirou partido de mim e abusou...

Ela acabou chorando e rindo ao mesmo tempo. Eu a abracei e acalentei. O namorado dela, Lincoln, havia “sartado”, conforme se dizia na época. Abusou, tirou partido e saltou. Por semanas, noite a noite, ela chorou essa ausência. Sempre na mesma mesa tomando a mesma caipirinha. E eu sempre com flores, firme, esperando minha vez. Entretanto, pouco me importava que não viesse, como não veio, a minha vez. Queria vê-la alegre e isto era grátis. E o consegui. Entrementes, Lincoln voltou. Ficamos amigos os três.... De vez em quando vou lá: ele cozinha, ela serve a mesa. Ele é cineasta, ela é jornalista e secretária de alto nível. Ele tem ciúme de mim e eu tenho ciúme dele. Já lhe avisei que Leila é uma das mulheres de minha vida. Se ele não andar na linha, acabaremos nos casando, Leila e eu, e seremos (creio) sofridamente alegres e companheiros, mas não felizes. Não foi o gato quem comeu a felicidade dela, foi o Lincoln quem a roubou e ela não exige devolução. Porém concorda: se ele um dia for outra vez embora, arranjar outra mulher, ela não sofrerá como da primeira vez. Se casará comigo. Podemos esperar. Temos tempo. Ela é jovem e eu não sou muito velho. Gastei-me um pouco — mas, como diz um senhor do Country engraçado e grosseiro, ainda “compareço”.... Ah! Eu compareço.

E nem é ela a única mulher de minha vida. Posso mencionar três mulheres que são as únicas da minha vida. Isto sem falar na Maria, a eterna. Com Maria me casei e sofremos o diabo. A tal incompatibilidade de gênios. Depois da separação, floriu entre nós a mais bela amizade que um homem pode merecer na face da Terra. Amizade de homem e mulher. Mulher bonita, desejável, Maria. Minha irmã, minha fada madrinha, às vezes mãezinha improvisada, enfermeira, secretária.... Não troco uma paixão devastadora pela mais linda mulher do mundo no momento — a mais linda, doida e apetecível, Margaret Trudeau — não troco uma paixão devastadora (e correspondida) por Margaret Trudeau, nem pela Bianca Jagger, que está se separando do Mick Jagger — para só citar dois mitos da geração discoteca. Não troco as duas, juntas, dispostas a seguir comigo para o fim do mundo num tapete mágico, não as troco, não quero suas carícias, dispenso seus beijos afogueados, pois a Maria, esta, paira bem acima dessas coisas. Maria é meiga.

Com Leila seria diferente. Tem algumas das qualidades morais e afetivas da Maria. Lindíssimos seios. Ancas poderosas de fêmea, não de manequim. E a Maria aplaudiria a nossa união, estou certo. Que mais quereria eu?

Ah, bom. E o Lincoln? Bem, o Lincoln abusou, tirou partido, “sartou”, fez a moça chorar, voltou, instalou-se outra vez em seu regaço não desgrudou nunca mais.

Que posso fazer? Talvez um dia chegue a minha vez. Vejam a curiosa situação: diante de mim, na poltrona, uma das mulheres de minha vida beberica a cachacinha portuguesa que me presenteou um amigo no tempo em que eu era bebedor. Chama-se Leila e tem aquele nariz quebrangulado que eu não permitiria ao dr. Pitanguy aproximar-se dele, a não ser desarmado. Ela bebe gole a gole. Ela ri. Fala de seus projetos profissionais. É a mulher de minha vida. Minha vizinha. Faz hora em minha casa. De vez em quando telefona a fim de saber se Lincoln já chegou. Quando Lincoln chegar, ela vai. É a vida. Que poderia eu fazer, a não ser continuar sorvendo meu chá, se o amor em nossos dias é coisa de doidos?

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