Se nós morássemos longe uma da outra, eu adoraria a senhora — confessou a Lya Cavalcanti uma vizinha, que participou da ação judicial para impedi-la de ter animais em casa.

À distância, ela seria adorável, porque protege bichos. De perto, vamos processá-la porque protege bichos. Esta é a lógica de quem deseja ver o mundo funcionando como um paraíso, desde que isto não lhe custe o menor incômodo.

Lya é acusada de seus cachorros ladrarem, perturbando o sossego da vizinhança. Não se condecora Lya porque ela, há 20 anos, protege a população do Cosme Velho, ao obstar a ocorrência de casos de raiva, frequentes em outros bairros.

A acusada (ou ré) tomou a si o encargo de recolher cães chamados vadios, que melhor chamaríamos de abandonados, pois não escolheram espontaneamente a vadiação: foram jogados fora por seus donos ou responsáveis e, ao léu, adquirem e transmitem doenças. Quem vai em socorro deles, enquanto as pessoas em geral se irritam com os latidos e se horrorizam diante do animal hidrófobo, mas não fazem nada para impedir a proliferação excessiva de cães votados ao abandono, é uma doida, conhecida como Dona Lya, que trata dos animais lazarentos, promove a vacinação antirrábica nas favelas, e tem força moral para recomendar a eutanásia como solução para a miséria irremediável dos animais excedentes, que a sociedade extermina atirando-os à água ou estrangulando-os ao nascerem.

Sim, uma doida, pois todo o dinheiro que ganha como trabalhadora qualificada (tradutora pública nomeada mediante concurso feito depois dos 50 anos, em que botou no chinelo centenas de candidatos jovens), ela o aplica no trato de animais refugados pela insensibilidade dos outros. Lya não tem em casa bichinhos de luxo, mais semelhantes a bibelôs de jade. O vira-lata é a sua paixão, se se pode chamar de paixão à prática de um princípio racional, do mais correto sentido humanístico. Ela vê a natureza como um sistema harmônico, que é preciso conservar, estendendo às suas partes mais diversas e humildes a necessária compreensão. E também exercendo o amor e a piedade em benefício dos seres que, nesse conjunto estão submetidos ao arbítrio do homem, responsável pelo que se passa sob o seu domínio. Não se trata de esquecer a espécie humana em favor de outras espécies; trata-se de unir as partes desarticuladas do conjunto, notoriamente desequilibrado pelas imperfeições do processo civilizador.

Quem não aceitar esta filosofia de comportamento julgará Lya Cavalcanti apenas uma excêntrica, perturbadora da lei do silêncio (essa lei que ninguém respeita e sempre se invoca) e administradora de pulgas caninas. Na realidade, ela é um dos mais conscientes e evoluídos exemplares humanos de que se pode orgulhar o Brasil de nossos dias. Sua doçura de coração, sua largueza de vistas, sua dedicação total a uma causa que lhe dá muito mais sofrimentos do que alegrias, deviam fazer com que ela vivesse cercada do respeito e da cooperação de todos.

O que se viu semana passada foi o contrário. Arrombaram-lhe o domicílio para cumprimento de decisão judicial que ela se comprometera a acatar; arrebataram-lhe à força animais que ela ia confiar a pessoas dispostas a mantê-los, ou que levaria para sítio longe da cidade; mataram ou deixaram morrer na hora alguns desses animais; e conduziram-na, detida, ao posto policial, sob acusação de desacato à autoridade. A benevolência do delegado permitiu que Lya, com irrepreensível senso profissional, voltasse por momentos ao seu escritório, para completar uma tradução a ser entregue no mesmo dia. Depois, ela resgatou os animais apreendidos, conduzindo-os para onde não chega o arrebatamento dos que pretendem defender a justiça praticando a violência.

Do episódio, Lya sai com o braço sangrando pela mordida de um dos cães, que destinara esse agrado a outrem; ela procurou evitar o ataque e levou as sobras. Não se queixa, e comenta com humor:

— Mas o Idi Amin Dada, eles não pegaram.

— Que Idi Amin é esse?

— Um cachorro mais valente que os outros.

O incidente não esmoreceu nela a chama de amor universal, de que deriva seu amor aos animais. Lya continuará, desta ou daquela maneira, a defendê-los, na tentativa de fazer o bicho-homem compreender, aceitar e estimar seus companheiros menos ilustres, na travessia da Terra. E deseja, de todos os colegas humanos, um pouco mais de boa vontade. Não aspira a ser adorada de perto. Basta-lhe ser entendida de perto.

carlos-drummond-de-andrade
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