01 nov 1983

A companhia indesejável

Periódico
Jornal do Brasil

 

Carlos Drummond de Andrade © Graña Drummond

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A moça é daquelas que dão duro no trabalho, como chefe de órgão importante, e depois vão para casa cuidar de si mesmas. Chamemo-la Andréia. Vive só, o que é mais inteligente do que viver com um apêndice importuno. Sem empregada, tendo apenas faxineira, cuida pessoalmente de sua dieta da lua, de suas roupas, de suas contas, de sua música, de seu tudo. E ao apagar a luz, finda a jornada cheia de responsabilidades para com a pátria e a vida, seu sono é o da pureza de alma. Que bom viver só, sem a presença do outro, o terrível outro, que é sempre (ou quase) um eu rabugento ou chatíssimo!

Semana passada, Andréia acordou disposta como sempre a lutar e foi tomar o seu chazinho de jasmim. A mesa, arranjada de véspera, era primor de ordem e asseio, de que a moça faz questão: um de seus traços pessoais. E que viu Andréia, além da xícara, dos apetrechos, da latinha de chá, da toalha, dos finos biscoitos? Viu que alguém passara por ali e tomara chá antes dela!

Que tomara chá, propriamente, não, mas que usara a mesa e deixara sinais, era evidente. As coisas estavam desarrumadas, a colher fora de lugar, havia rugas na toalha, um biscoito fora trincado, e até, para horror de Andréia, pequena e estranha substância se depositara sobre a mesa!

A moça correu às portas, a social e a de serviço, e achou-as trancadas como as deixara. Pela varanda fechada não poderia ter entrado ninguém. Que ser misterioso conspurcara a sua mesa? Mal indagou isto a si mesma, viu uma forma veloz deslizar pelo tapete e esconder-se atrás de uma poltrona. E essa coisa chispante, branco-acinzentada, era um camundongo. Ir correndo à copa, brandir uma vassoura e atacar o bichinho foi obra de um momento. Em vão, é claro. Não há camundongo que se deixe pegar por moça nervosa e de má pontaria.

O tempo de Andréia era curto, não dava para empreender uma caçada em regra, com o auxílio do gato do porteiro*; ela deixou o apartamento e foi muito abalada para o serviço. De lá, telefonou para a Comlurb, pedindo que fossem pegar o rato em sua casa. Marcada a visita para o dia seguinte, Andréia faltou ao trabalho para atender ao matador de ratos, que apareceu com a sua instrumentária, viu, não achou sinal de rato nenhum e pediu maiores esclarecimentos:

— A senhora pode me dizer o tamanho dele?

— Vi só um momentinho, acho que tem uns 90 milímetros de comprimento outros tantos de rabo.

O homem sorriu:

— Ah, então, o que a senhora viu foi um camundongo.

— Que diferença faz? Ele rói da mesma maneira e eu me sinto ameaçada.

— A diferença é que nós só cuidamos de ratos, desses ratões ou ratazanas, que medem 20 centímetros de comprimento e pouco menos de rabo. Esse ratinho da senhora é café-pequeno pra nós. Já experimentou ratoeira?

— O porteiro me emprestou uma, que até agora não pegou nada.

— Vai ver que o danadinho sentiu cheiro de ratoeira usada, que não engana, e não foi besta de arriscar. Eles têm um faro! Compre uma ratoeira no bazar.

— É o que vou fazer já. E se ela não pegar? Se o ratinho for bastante inteligente para perceber que aquilo é de morte? 

— Bem, nunca se pode garantir nada a respeito do comportamento dos camundongos. Eu mesmo já lutei contra eles lá em casa, e pegava uns três por dia. Mas sabe o que aconteceu? Ficava sempre uma fêmea para parir cinco vezes por ano uma média de 8 a 10 filhotes de cada vez. 

— O quê? — Andréia teve o maior arregalo de olhos de sua vida. — E eu vou ter em casa essa cambada toda infernizando a minha vida?

— Calma. Não estou dizendo que o seu camundongo...

— Meu, não! 

— Que o camundongo desta casa se multiplique. Se é um só, como é que vai se multiplicar? Procure manter a serenidade, nem eu vim aqui para assustar mais a senhora. Vim em missão de paz.

— E então?

— Então, acho que tenho uma solução para o seu caso.

— Diga, diga.

— Tem um preparado aí que dizem que é um barato. Eu não experimentei, mas um amigo meu afiançou que é tiro e queda. O nome é Catitoline. Não sabe que o povo chama camundongo de catito? Pois é.

— Ah, obrigada pela indicação! Vou rezar para que esse Catitoline dê certo. Bem, me esqueci de que não rezo, mas Deus é grande. O que eu não posso é viver em companhia de um ratinho, e muito menos se ele for de família numerosa. 

Pelo telefone, Andréia comprou imediatamente o raticida. Terá ela sucesso na Operação Catitoline? Veremos na próxima.

 

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*E o porteiro não tinha gato.

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